Jéssica Silva*
A engenharia nacional vem enfrentando queda no número de profissionais formados. Conforme levantamento feito pela Mira Pesquisa para o SEESP, com dados do Censo da Educação Superior 2023, o País teve 95.607 concluintes dos cursos da área naquele ano. Os dados de 2024, divulgados recentemente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), não são mais animadores: foram 87.505 novos engenheiros (sem incluir os agrônomos, cuja graduação não encontra-se discriminada na plataforma do órgão).
Em contrapartida, o mercado de trabalho demanda o profissional. Só na área segmentada como “tecnologia e engenharia”, a perspectiva é de mais de 1,818 milhão de empregos até 2027, segundo projeção do Observatório Nacional da Indústria. Somado à área da construção, esse número salta para mais de 6 milhões de postos de trabalho no Brasil, considerando apenas o emprego formal.
Para o coordenador do Conselho Tecnológico do SEESP e professor titular da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), José Roberto Cardoso, a situação paradoxal é de crise. Ele abriu as falas do seminário “Ensino de engenharia: quantidade, qualidade e empregabilidade”, realizado pela Federação Nacional dos Engenheiros (FNE) em 18 de setembro último, na sede do sindicato.
Segundo Cardoso, a engenharia passa por um momento de “breakpoint” (ponto de interrupção), em que é necessário analisar o que está sendo feito. “No que reside o afastamento dos jovens da área? Quais são os atributos exigidos? Competências laboratoriais, análise de dados, redação técnica. Mas no futuro, que começa amanhã, esse profissional tem que ter outras competências, condições de se envolver numa rede social multidisciplinar, gerir projetos, saber se comunicar, conduta ética. Nossa academia está preparada?”, indagou.
Da esquerda para a direita, Marcos Monteiro, Marcelo Knörich Zuffo, Vahan Agopyan, Ricardo Teixeira, José Roberto Cardoso e o presidente Murilo. Foto: Jéssica Silva
Em uma década, a USP teve uma redução de cerca de 150 mil alunos na engenharia, conforme revelou o diretor do Centro de Inovação da USP (InovaUSP), Marcelo Knörich Zuffo. “Quando eu fiz Poli, a estimativa era de 42 candidatos para uma vaga. Hoje a relação está dois para um”, apontou. E criticou: “Nós nos declaramos inovadores, mas somos conservadores no ensino de engenharia.”
Para o secretário municipal de Infraestrutura Urbana e Obras de São Paulo, Marcos Monteiro, que também é professor na Escola de Engenharia Mauá, do Instituto Mauá de Tecnologia (IMT), a nova geração, mais conectada e imediatista, não vê vantagens na área. “A gente fala que faltam engenheiros, mas a dedicação do aluno no curso é desproporcional à remuneração depois”, pontuou. “Temos que brigar por salários melhores”, assentiu o presidente da Câmara Municipal de São Paulo, Ricardo Teixeira.
Outro obstáculo citado pelos especialistas é a deficiência no ensino básico quanto as disciplinas de ciências exatas. “É um problema complexo, os livros didáticos são ruins e o ensino em forma de ‘decoreba’. A matemática, a física não podem ser um bicho que ninguém entende. Precisamos ter coragem de modernizar”, externou o secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado de São Paulo, Vahan Agopyan.
Nesse sentido, ele também abordou a questão dos cursos de engenharia na modalidade a distância (EaD). Em maio último, o Ministério da Educação (MEC) publicou portaria e decreto que regulamentam os formatos de ensino superior de graduação. O bacharelado na área pode ser ofertado com até 60% do curso em EaD. Apesar da preocupação com a formação, que demanda muita aula prática, Agopyan ratificou que, seja presencial ou não, “temos que lutar contra o mau ensino”.
“Nós queremos bons engenheiros, então as escolas devem ser boas. E ele deve ser valorizado assim que se formar. Temos que, cada vez mais, discutir oportunidades, buscar o profissional, os alunos, mostrar que a engenharia está em tudo, que fazer engenharia é participar do desenvolvimento do País”, afirmou Murilo Pinheiro, presidente do SEESP.
Como formar mais e melhores engenheiros
Desde que publicadas, em 2019, as novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do Curso de Graduação em Engenharia propuseram inovações ao ensino, com metodologia mais ativa, valorizando aulas práticas, projetos multidisciplinares e demais ações que coloquem o estudante em contato com a profissão e demandas do mercado de trabalho.
A partir da esquerda, Reinaldo Giudici, Marcos Massi e Wesley Góis. Fotos: Rita Casaro“Nossa preocupação hoje é em formar melhor, estamos mais focados na qualidade do que na quantidade”, afirmou Reinaldo Giudici, diretor da Poli-USP. Ele informou que a escola recebe cerca de 870 ingressantes por ano, e de 20% a 25% destes têm a possibilidade de estudar no exterior, por meio do programa de internacionalização da instituição ativo há 25 anos.
Para suprimir a carência do ensino básico em matérias como matemática, física e química, que os alunos trazem ao ensino superior, a universidade promove aulas de reforço online antes do início do semestre, ministradas pelos próprios professores da Poli. A escola trabalha com 17 habilitações diferentes de engenharia, mas foram criadas áreas integrativas para incentivar que os alunos atuem em temas como transição energética, infraestrutura resiliente e sustentável, cidades inteligentes, transformação digital e engenharia para a vida.
“Outra alteração importante que fizemos foi no primeiro ano, com disciplinas integradas de uma maneira mais efetiva. Hoje implementamos cálculo, álgebra e física numa disciplina de fundamentos. Os professores trabalham conjuntamente para trazer exemplos práticos”, salientou o diretor.
Já Marcos Massi, diretor da Escola de Engenharia da Universidade Mackenzie, abordou as ações da instituição para captação de novos estudantes. Houve aumento de 23% de professores-doutores no quadro docente, e mais de 50 laboratórios foram reformados nos últimos quatro anos. “Foram investidos R$ 17,7 milhões até o momento em infraestrutura e equipamentos”, frisou.
A universidade ampliou o número de parcerias com empresas para desenvolver projetos e eventos, como o hackathon. Na edição deste ano, foram 40 desafios de 41 empresas com um total de 1.962 participantes. “Dura uma semana, as empresas trazem equipes técnicas para os desafios, os alunos põem a mão na massa e aprendem muito. Grupos que ganharam tinham alunos do terceiro semestre desenvolvendo temas que ainda não viram na graduação. Além dos prêmios, eles visitam as empresas, é um networking”, ressaltou Massi. E pontuou: “Com todas essas ações, conseguimos aumentar em 43% o número de ingressantes de 2023 a 2025.”
A Universidade Federal do ABC (UFABC), com 19 anos de fundação, já nasceu com proposta pedagógica diferenciada, segundo apresentou o professor Wesley Góis. Os ingressantes escolhem entre bacharelado ou licenciatura com eixos de conhecimento multidisciplinares que permitem a especialização em diversas áreas ao longo do curso. De acordo com ele, a maioria dos estudantes sai com dois diplomas no mínimo: entra para o bacharelado de Ciências da Computação e paralelamente pode fazer Engenharia e até uma pós.
De 2.106 vagas disponíveis neste ano, foram preenchidas 2.099. A universidade ainda tem outras exclusivas para ingressantes do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), do Programa de Egressos de Escolas Públicas do Grande ABC (Proep-ABC) e para estudantes premiados em competições científicas e acadêmicas.
Na avaliação de Góis, resolver a demanda por formar mais e melhores engenheiros passa pela valorização dos profissionais da educação. “Quando colocamos uma lupa, vemos que o gargalo em licenciatura é muito grande. É preciso que ações estratégicas sejam tomadas, com atuação dos governos federal, estaduais e municipais, para que grandes cabeças queiram ser também professores. Sem isso, nada vai mudar”, defendeu.
Eduardo Nadaleto e Raul Gonzales Lima (à direita). Fotos: Rita Casaro “A sociedade mudou, a educação tem que mudar e se adequar”, concordou Eduardo Nadaleto, professor do Instituto Mauá de Tecnologia (IMT). Ele pontuou a necessidade de o profissional da engenharia manter o aprendizado constante. “Um tempo atrás, falávamos que a cada 15 anos mudava a tecnologia no mundo, hoje diminuiu para cada cinco”, frisou.
Para Raul Gonzales Lima, pró-reitor adjunto de Tecnologia e Inovação da USP e representante da Associação de Ex-alunos da Poli, uma grade curricular mais integrada e a possibilidade de duplo diploma com formação nacional e estrangeira são ações com potencial de aproximar a engenharia dos jovens de 15, 16 anos. Ele ainda indicou: “O aprendizado tem que ser baseado em competências.”
Atrair a juventude
Como conquistar o interesse dos estudantes do ensino médio pela profissão foi tema debatido no seminário realizado pela FNE. Rodrigo Dib, superintendente institucional e de inovação do Centro de Integração Empresa-Escola (Ciee), apresentou dados da pesquisa que buscou traçar um panorama do mercado da engenharia e como ele é percebido pela juventude.
Em um levantamento feito pelo Ciee e pelo Instituto Locomotiva junto a 1.150 estudantes do ensino médio em julho último, apenas 12% afirmaram desejar cursar engenharia, enquanto 49% disseram preferir a área de humanas. Entre as razões apresentadas, está o terror causado pelos cálculos. “A cada dez que saem do ensino médio, só dois têm o nível básico de matemática”, informou. Segundo Dib, a disciplina afasta 70% dos alunos da engenharia. Além disso, há a percepção de que o curso é difícil, caro e que a profissão está distante do dia a dia dos alunos.
Diante desse quadro, que já gera déficit de 75 mil profissionais no País segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI), afirmou o superintendente do Ciee, o esforço tem sido por apresentar uma imagem da engenharia que se conecte à vida dos jovens. “É um desafio do Brasil. Se não houver engenheiros, não haverá desenvolvimento”, ressaltou. É relevante também, na sua visão, demonstrar aos jovens a possibilidade de pensar a formação em engenharia como porta para a construção de uma carreira com possibilidade de atuação em diversos segmentos.
Rodrigo Dib, Murilo Pinheiro e Samara Novaes. Fotos: Rita CasaroUma boa notícia nesse cenário, como informou Dib, é que os estágios na área pagam bolsas 33% acima da média nacional – no Estado de São Paulo, a disparidade salta para 52%. Os salários no setor, que vão, conforme apurado, de R$ 4.273,00 a R$ 15.982,00, também são superiores à média do País, hoje em R$ 3.225,00.
No entanto, esse padrão de remuneração para o profissional formado, apontou durante o debate o presidente Murilo Pinheiro, está longe do ideal. “Os engenheiros têm direito por lei a um piso equivalente a nove salários mínimos, o que hoje se aproxima dos R$ 15.000,00. Esse deve ser o ganho inicial, e essa regra deve ser um incentivo aos jovens”, afirmou.
O dirigente propôs que o Ciee se some ao esforço para o cumprimento do salário mínimo profissional, “difícil batalha travada pelos nossos sindicatos”. “Quando o estudante se forma, o empresário quer pagar menos, mas precisa pagar o piso”, reforçou.
Acompanhando o evento, Samara Novaes questionou Dib sobre exemplos práticos de ações para inclusão de mulheres na profissão. “Tenho visto poucos”, reconheceu o representante do Ciee, que havia colocado entre os entraves à opção pela engenharia o fato de a área ser vista como muito masculinizada. A jovem, graduada em Engenharia Civil em 2022, relatou ter conseguido se adaptar ao trabalho no canteiro de obras graças ao apoio recebido do mestre e do engenheiro sênior que a acolheram num ambiente incialmente hostil, “de brutalidade”.
Educação continuada
Assegurar mais igualdade e diversidade é um desafio que vem sendo enfrentado pelo SEESP, por meio de seu Núcleo da Mulher Engenheira. Outro é contribuir com a educação continuada, através do SEESP Educação, o que é premente para o profissional da área, tendo em vista a impossibilidade de adquirir na graduação todas as competências necessárias à construção de uma carreira de sucesso.
Gilberto Francisco Martha de Souza (à esquerda) e Júlio Lucchi. Fotos: Rita CasaroGilberto Francisco Martha de Souza, coordenador do Programa de Educação Continuada da Escola Politécnica (Pece) da USP, foi categórico: “Por mais que se busque manter atualizada a grade curricular, há a necessidade de [o profissional] acompanhar tecnicamente os anseios dos diversos setores industriais e da sociedade.” Como exemplo, citou o trator agrícola: “O engenheiro que se formou em 2000 não sabe fazer a máquina de 2020, que é autônoma, funcionar.”
Ele apontou ainda o amplo espectro de tecnologias-chave para a liderança em inovação elencadas por publicação da Universidade de Stanford. Estas incluem inteligência artificial, biotecnologia, criptografia, lasers, ciência dos materiais, neurociência, robótica, semicondutores, ciência espacial e energias renováveis. “Não tem como sair da escola sabendo tudo isso”, asseverou.
A educação continuada, conforme reforçou, que abrange aprendizado formal e informal, incluindo cursos e eventos oferecidos pelas associações profissionais, além da pós-graduação stricto e lato sensu oferecida pelas instituições acadêmicas, propicia atualização, networking e maior competitividade.
O programa de pós-graduação do IMT propõe a atualização profissional como ponto inicial, o aperfeiçoamento a seguir e, finalmente, a possibilidade de se tornar um especialista. Nessa lógica, explicou o coordenador do programa de Educação Continuada do instituto, Júlio Lucchi, os alunos vão criando o caminho que entendem ser o melhor para a carreira, sem duplicação de esforços e perda de tempo. “A ideia de estar constantemente se atualizando é condição sine qua non para se manter no mercado e progredir na carreira”, enfatizou.
Benedito Aguiar Neto e Mário Luís Farah (à direita). Fotos: Rita CasaroLucchi destacou ainda ser obrigatório, por parte das instituições que oferecem a pós-graduação, o contato com o mercado. Ele defendeu que o conhecimento adquirido nos cursos de especialização seja aproveitado nos de mestrado e doutorado. Além disso, propôs a ideia de “residência em pesquisa”, que valorize o desenvolvimento de projetos por alunos que buscam na pós-graduação soluções para problemas concretos das empresas em que atuam.
A participação de organizações como SEESP, FNE e Sistema Confea/Crea no esforço de educação continuada na engenharia foi defendida por Benedito Aguiar Neto, diretor-geral do Instituto Mackenzie de Pesquisa em Grafeno e Nanotecnologia (MackGraphe) e ex-reitor da Universidade Mackenzie. “O processo de ensino e aprendizagem cabe também a outras instituições, além das universidades”, afirmou.
Na sua avaliação, é fundamental “buscar o alinhamento entre as demandas de mercado, as oportunidades de negócios e o conhecimento científico”. Garantir profissionais aptos a esses desafios é essencial para que se alcance o desenvolvimento nacional efetivo. “O Brasil ainda carece da capacidade de transformação do conhecimento em produtos e negócios. Não podemos atirar em todas as direções, mas temos que ter um projeto estratégico em que as instituições cooperem”, disse Neto.
Segundo Mário Luís Farah, assessor da Pró-Reitoria de Educação Continuada da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), as qualificações e competências exigidas pelo mercado atual incluem as hard skills em tecnologia, inovação, sustentabilidade e digitalização; e as soft skills como habilidades interpessoais, comunicação, liderança e solução de problemas complexos. Há demanda por especialistas que compreendam profundamente áreas como engenharia de dados, inteligência artificial e questões ambientais. “Se não tiver formação contínua, ficará para trás”, advertiu.
*Colaborou Rita Casaro
**Foto no destaque: Freepik