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27/06/2014

Pedágio urbano inteligente: a alternativa ao rodízio de veículos

A recente e descuidada tentativa do Legislativo municipal de extinção do rodízio de São Paulo em meio a este caos da mobilidade motorizada faz lembrar o esgotamento dessa medida extrema de restrição ao uso do transporte individual. É razoável insistir com um rodízio primitivo, inflexível, obsoleto e que não reverte nem um tostão para o transporte público? Não estaríamos diante de um modelo impossível de imobilidade urbana?O poder público deveria, portanto, aproveitar este momento crítico para estabelecer uma salutar discussão sobre o pedágio urbano, desprovida de preconceitos e distanciada da política.

Em um dado momento, quem anda de carro terá inexoravelmente que fazer a escolha certa da modalidade de restrição racional do seu uso; isso se quiser trafegar com um pouco mais de fluidez nas grandes cidades brasileiras ocupando indevidamente muito mais espaço viário público do que a maior parcela da população que usa o transporte público coletivo. Os ônibus ocupam muito menos espaço viário público e poluem muito menos do que os veículos particulares, se considerada a emissão por passageiro transportado. O transporte coletivo, aliás, tem ficado perversamente encurralado no congestionamento, predominantemente formado por automóveis.

Se não há saídas para esse nó no nível da superfície, escolha-se então uma medida de restrição que faça sentido e que, pelo menos,tenha o devido retorno positivo para a promoção da mobilidade sustentável. Ou teremos todos que amargar esse rodízio esgotado – logo, logo de três ou mais finais de placa – e esta realidade sufocante, que só piora a cada dia, de permanecermos parados horas a fio dentro do carro e massacrados nos ônibus, respirando dentro da cabine concentrações de poluentes cancerígenos, que são da ordem de oito a dez vezes maiores que os já altíssimos níveis de poluição que circundam os pedestres nas calçadas de nossas urbes.

O pedágio urbano inteligente (PUI) não é o de Londres, que cerca a área central da cidade como o rodízio paulistano. Ele é uma forma bem mais elaborada de restrição, com cobrança pelo uso da via nos trechos de corredores tipicamente congestionados. O pagamento é proporcional ao tempo de permanência dos veículos em movimento nesses trechos, detectados a distância e identificados eletronicamente. A cobrança só é efetivada se a via estiver de fato congestionada, apresentando velocidades médias do tráfego consistentemente baixas – do contrário, não há cobrança.

O PUI é considerado por muitos especialistas como a mais qualificada medida de restrição do tráfego motorizado. Aplaca os congestionamentos e a poluição, e ao mesmo tempo, com sua arrecadação, ajuda a promover as diversas medidas do sistema de gestão da mobilidade sustentável local (ciclovias, calçadões, parklets etc.), entre as quais destaca-se a maior oferta e melhor qualidade do transporte público. Esse tipo de pedágio tem notáveis vantagens sobre as outras modalidades. Vejamos.

Ao contrário do poderoso mito popular, que chega a afetar políticos desavisados, imprensa e até mesmo autoridades do ramo, o PUI é uma medida amplamente democrática e socializante. Onera com justiça e parcimônia o uso individual e abusivo do limitado espaço viário público, tornando-o mais eficiente, produtivo e limpo. Cada decisão de viagem de automóvel resulta em ônus físico e financeiro a todos os usuários da via, referente ao seu tempo adicional preso no congestionamento e aos custos associados à maior taxa típica de poluição do transporte individual. No entanto,cada motorista adicional não percebe os danos de sua decisão, ele só enxerga seus "direitos individuais". Ao arcar com custos de deslocamento menores do que o real, que inclui essas externalidades, o usuário do transporte individual é indevidamente incentivado por uma política pública distorcida a ter um comportamento perdulário, fazendo mais viagens motorizadas e usando mais espaço viário do que seria aceitável do ponto de vista de uma economia socialmente equilibrada.

Além de promover a mitigação desse ônus social multifacetado, o PUI ainda reverte, de modo singular, os recursos da cobrança para as medidas de gestão da mobilidade sustentável e expansão e melhoria da qualidade do transporte público local. É uma espécie de política de Robin Hood: tira do transporte individual, espaçoso e poluidor, e dá os merecidos benefícios e mais mobilidade para os "cidadãos sustentáveis" que usam outros meios alternativos e o transporte público – esses sempre muito mais comedidos nas emissões de poluentes, no consumo de combustível e no uso do espaço viário comum.

O PUI é flexível. Pode e deve necessariamente ser implementado gradativamente por meio de tarifas básicas progressivas e diferenciadas por tipo de corredor viário e categoria de veículo. Essas podem ainda ser ajustadas conforme os níveis típicos de emissões e consumo de cada modelo, e valor do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) – sem que haja impactos econômicos exagerados sobre a população de menor renda, especialmente no início do processo. E por não haver capacidade ociosa instalada no saturado sistema de transporte público das grandes metrópoles brasileiras, ao contrário de outras cidades de países desenvolvidos que implementaram o pedágio urbano, é necessário que a progressividade do PUI seja ajustada ao ritmo de expansão dessa oferta crescente.

Nessa fase crítica, e pouco antes dela, justamente por causa de uma natural resistência inicial irrefletida da população, o pedágio urbano sempre gerou controvérsia onde implementado, mas nunca depois de sua consolidação. Observa-se nos esquemas em operação que o maior aliado do pedágio urbano é a sua própria existência; a tendência da opinião pública foi sempre revertida para uma boa aceitação geral da medida após a evidente constatação prática de suas diversas virtudes. Por isso, é essencial que a introdução do PUI seja lenta, pesando pouco no bolso dos usuários de veículos no início do processo; assim, com as nossas condições locais, levará alguns anos antes de começar a apresentar os resultados esperados, e é preciso deixar isso claro. Os valores das tarifas podem ser ajustados – sempre por decisão de uma Junta Técnica de Gestão do PUI – ponto a ponto, caso não se mostrem suficientes para induzir a esperada redução dos fluxos.

Por outro lado, aos proprietários de mais de um veículo particular, podem ser atribuídas tarifas básicas maiores no PUI, o que converge com as atuais tendências de limitação de propriedade e uso de automóveis observadas em algumas grandes metrópoles orientais saturadas.

Para facilitar sua aceitação inicial, o PUI deve ser apresentado dentro de um pacote consistente de medidas de gestão da mobilidade urbana. É fundamental que a população seja reiteradamente alertada para os seguintes números: na cidade de São Paulo, supondo que 2 milhões de veículos por dia percorram trechos congestionados do sistema monitorado pelo PUI, em 22 dias do mês, durante dez meses por ano, pagando em média sete reais por dia por veículo para transitar nos trechos congestionados, num ano, seriam cerca de R$ 3 bilhões para investimento em melhoria e expansão do sistema de transporte público: o equivalente a 7km de linha de metrô em um ano, 50km de Veículo Leve sobre Trilho (VLT) ou 100km de Bus Rapid Transit (BRT – corredores de ônibus avançados), como o Transmillenio de Bogotá, evolução do projeto dos corredores de Curitiba. Em dez anos de PUI, serão R$ 30 bilhões para a construção de 70km de linhas de metrô (pouco menos que o tamanho da rede atual de São Paulo), ou 500km de VLT, ou 1.000km de BRT a mais para a cidade.

Para garantir a correta aplicação dos recursos do PUI nas diferentes medidas de mobilidade sustentável, deve haver necessariamente mecanismos legais que garantam a auditoria sistemática independente de terceira parte e total transparência na aplicação da arrecadação. Na cidade de São Paulo,por exemplo, o Fundo Municipal de Desenvolvimento de Trânsito garante que os recursos das multas sejam destinados exclusivamente para a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). Algo semelhante poderá ser regulado no âmbito do PUI em relação ao transporte público e às outras medidas de mobilidade sustentável locais. Daí vem a terceira pergunta: o que o rodízio fez em prol do passageiro do transporte público (maior vítima dos congestionamentos) durante seus quase 20 anos de existência?

Mas as virtudes não param por aí. A operação do PUI, além de flexível, também é generosa. Com a ajuda de recursos eletrônicos e de comunicação corriqueiros, ele pode ser ativado apenas nos trechos e horários onde se observam congestionamentos, caracterizados por velocidades médias do tráfego consistentemente baixas. E a cobrança pode ser eventualmente suspensa, em caso de necessidade extraordinária. Permite ainda que em situações de emergência individual, as pessoas usem seus carros, sem serem pesadamente penalizadas com multas abusivas (mais de R$ 90,00) e perda de quatro pontos na carteira, como no caso do truculento rodízio "queixo duro", que castiga impiedosamente usuários em emergências ou presos em congestionamentos inesperados próximo aos horários-limite.

Além de todas essas vantagens, o PUI é moderado e justo. Pode ser cobrado proporcionalmente ao impacto ambiental típico de cada veículo – definido precisamente pelos conhecidos fatores de emissão de cada modelo – e ao espaço ocupado na via pelo veículo, em especial, os enormes Sport Utility Vehicles (SUVs, pick-ups beberrões que pesam mais de duas toneladas e se arrastam pelas ruas da cidade, na maioria, com um único passageiro). Assim, o PUI onerará mais os veículos de uso individual maiores e os que têm taxas típicas mais elevadas de emissão de poluentes e consumo. O sistema pode ainda isentar ou diminuir a tarifa cobrada dos veículos particulares com alto índice de ocupação (se isso for tecnicamente possível, ainda a saber) e os de emissões típicas de poluentes tóxicos e ruído muito baixas (near-zero emissions), bem como os que usam combustíveis alternativos, os híbridos e os elétricos de emissão zero. Por outro lado, é possível acoplar ao sistema tarifário um ajuste proporcional ao valor do IPVA, podendo assim, eventualmente, incluir no PUI um componente social, conforme a política diferenciada nacionalmente aceita no próprio IPVA.

Em Santiago do Chile há grandes avenidas pedagiadas há muitos anos com os mecanismos aqui mencionados. Quem usa, paga. Quem não quer pagar, usa vias secundárias. Não se pode esquecer que na era dos smartphones haverá aplicativos relacionados com o PUI que indicarão as rotas abrangidas e monitoradas pelo sistema, rotas alternativas, dias e horários livres de cobrança, detalhamento do sistema tarifário, mapa e relação dos trechos congestionados, em tempo real, e os valores a pagar acumulados no mês de cada usuário, obtidos por meio de senha pessoal.

Com essas múltiplas possibilidades, o PUI se qualifica como uma das medidas de gestão da mobilidade urbana de maior adequação e eficácia potencial, entre as alternativas, com efeitos significativamente positivos no controle da poluição, do efeito estufa, do ruído e do stress urbano, além dos (quantificáveis) benefícios socioeconômicos associados. O PUI induzirá progressivamente a transferência de viagens individuais motorizadas para o transporte público, que tem índices de emissão por passageiro transportado muito inferiores aos veículos particulares convencionais, incluídas as poluentes, barulhentas e inseguras motocicletas. E esses índices podem ser ainda menores, se o transporte público evoluir com a ajuda dos recursos do PUI para alternativas tecnológicas mais limpas, frescas (que não aquecem o Planeta) e eficientes: melhores motores e combustíveis e programas de incentivo à instalação de filtros de particulados (Retrofits) nos ônibus mais velhos, a exemplo de muitos países desenvolvidos e até mesmo emergentes, como nossos vizinhos exemplares, Chile e Colômbia.

O PUI será parte integrante de um conjunto de medidas a serem previamente discutidas, planejadas no longo prazo e elencadas, dentro do conceito de gerenciamento da mobilidade urbana – sempre integrado a outras medidas complementares no âmbito da Lei Federal 12.587 de 2012, que prevê os Planos de Mobilidade Urbana nas cidades brasileiras. Assim, devido à conjuntura específica de cada cidade, o pedágio urbano no Brasil assumirá características de política pública distinta das medidas equivalentes de países desenvolvidos. Aqui, seria aplicado essencialmente como política focada na restrição do uso do transporte individual motorizado e no incentivo financeiro a meios alternativos sustentáveis.

Para subsídio desses planos e dos estudos de viabilidade, recomenda-se que sejam realizadas simulações de transporte e tráfego pelas autoridades de trânsito, transportes e ambientais, visando justificar tecnicamente a implementação do PUI acoplado às outras medidas. Mudanças nos padrões de velocidades, transferência modal, ganhos de tempo, economias diretas e indiretas, receitas e investimentos, devem compor os parâmetros mínimos do estudo. Pode-se ainda fazer uma "pesquisa de preferência declarada” e usar a rede  do metrô para essa simulação.

Tudo isso pode parecer complicado à primeira vista, até mesmo uma peça de ficção. Mas com os recursos eletrônicos popularizados e a cada dia mais baratos (transponders, chips, sistemas OCR – Optical Character Recognition de leitura de placas, transmissão por antenas via celular ao longo da rua, bancos de dados avançados com capacidade quase ilimitada de armazenagem etc.), esse sistema já poderia ser operado hoje no Brasil por entidades especializadas com certa facilidade e custos módicos.

O PUI é uma forma tranquila – sem radicalismos – de mitigar o caos do tráfego e a poluição nas grandes cidades. Ele tem tudo para ser, em breve, a mais importante bandeira dos agentes de defesa do interesse público, órgãos de meio ambiente, trânsito e transportes, da mídia e de autoridades brasileiras de visão.

Mas, para que esse cenário virtuoso e paradigmático se materialize em alguns anos, essas autoridades, e principalmente os políticos, devem esquecer um pouco o cego apego às urnas e olhar atentamente para a qualidade de suas (e de seus concidadãos e descendentes) penosas existências nas grandes metrópoles.

Finalmente, arrisco afirmar que não há como fugir do pedágio urbano inteligente como medida extrema alternativa ao rodízio – ou da criação de um imposto sobre o consumo de gasolina e etanol com as mesmas características de transferência de recursos do PUI. Entretanto, esse imposto, incidindo igualmente sobre todos os usuários, embora de fácil entendimento e implementação operacional, pode ser inviabilizado por sua complexidade política. O PUI resta então, como a mais evidente medida sustentável para melhorar as catastróficas condições de mobilidade e contaminação nas grandes áreas urbanas brasileiras –supercongestionadas pelo uso excessivo, indevido e frequentemente desnecessário do transporte individual.

Olimpio Alvares ,57, é engenheiro mecânico formado pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), especialista em emissões e controle de poluição do ar, consultor em meio ambiente e transporte sustentável e colaborador do Instituto Saúde e Sustentabilidade

* Este artigo incorpora relevantes contribuições dos seguintes especialistas em trânsito e transportes:

- Adauto Martinez Filho, engenheiro civil formado pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), ex-diretor técnico do Instituto Nacional de Saúde no Trabalho (INST), ex-diretor de Operações da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) e sócio-diretor da Tabagon Engenharia

- Aquiles Leonardo Pisanelli, engenheiro mecânico automobilístico da Fundação Educacional Inaciana Padre Sabóia de Medeiros (FEI), especialista em inspeção veicular, ex-assessor da Direção da CET, ex-membro da Câmara Temática de Assuntos Veiculares (CTAV) do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), assessor técnico da Associação Nacional dos Organismos de Inspeção (Angis), coordenador da revisão das normas de inspeção veicular da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT)

- Lincoln Paiva, ambientalista e consultor de mobilidade sustentável, membro da Sustainable Low Carbon Transport do Departamento de Desenvolvimento Socioeconômico da Organização das Nações Unidas (ONU), membro da Cities-for-Mobility, da cidade de Stuttgart, e do Grupo de Trabalho de Meio Ambiente e Mobilidade do Movimento Nossa São Paulo. É sócio-diretor do escritório de consultoria de mobilidade sustentável Green Mobility e idealizador do Projeto MelhorAr de Mobilidade Sustentável


* por Victor Abel Grostein, engenheiro civil pela Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), pós-graduado no Imperial College of Science and Technology, mestre em Planejamento de Transportes pela Universidade de Londres, professor da Poli-USP em Operação Ferroviária, do Instituto Militar de Engenharia (IME) no curso de mestrado em Planejamento de Transportes e sócio-diretor da Vetec Engenharia










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Comentários  
# EngenheiroWerner Heilbrun 14-07-2014 10:06
Entendo que essa ideia só seria interessante a partir do momento que o nosso governo cumprisse com o que esta planejado. Veja as linhas do metro o atraso que elas sofrem. o planejamento das linhas de ônibus que trafegam nos corredores são totalmente erradas, por exemplo o corredor Praça das Bandeiras / Santo Amaro, sai do terminal das Bandeiras vários destinos quando a capilaridade deveria ser no terminal Santo Amaro. Outro ponto é que o estado de São Paulo tem alíquota de IPVA de 4%, a maior frota de veículos, logo entendo que os governantes deveriam usar esse recurso no sistema viário da cidade. Ampliação das ruas e avenidas.
Acho que a sociedade já paga uma carga tributária bastante alta sem ter o seu devido retorno. Fazer o PUI é mais uma fonte de dinheiro que ficará disponível para a corrupção. Vamos nos engenheiros mostrar que com planejamento e com os recursos disponíveis podemos resolver os problemas da cidade. Me coloco a sua disposição para contribuir com minhas ideias.
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