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08/04/2024

A revolução digital redefinindo a forma como nos deslocamos nas cidades

Jurandir Fernandes

 

Daniel Kahneman, Nobel de Ciências Econômicas, alertava para o que chamou de “ilusão de compreensão”, descrita como o processo de fazer julgamentos precipitados sobre questões complexas com base em impressões superficiais. Esse tipo de julgamento rápido e superficial, tão comum em momentos de crise, deturpa a realidade e traz à tona propostas mirabolantes para temas delicados e de grande impacto na vida urbana, como é o caso do transporte coletivo em nossas cidades.

 

Em todas as áreas da engenharia, acompanhamos as grandes inovações trazidas pela digitalização. Parte dessas inovações recai sobre a mobilidade urbana que experimenta uma transformação sem precedentes, impulsionada por avanços em telecomunicações e digitalização.

 

Neste artigo comento como essa revolução tecnológica está reconfigurando os padrões e a necessidade de deslocamento das pessoas, privilegiando o fluxo de informações e de mercadorias. Em parte, fica claro o porquê da grande queda de passageiros dos transportes públicos ocorrida nos últimos 20 anos. Digo em parte porque outros fatores têm levado à queda da demanda nos transportes coletivos: o aumento do uso de motos e de carros e o envelhecimento da população com crescente número de aposentados são alguns exemplos.

 

Foto: EyeEm Freepik 

A digitalização e as telecomunicações têm reduzido significativamente a necessidade de deslocamentos físicos. A ascensão do trabalho remoto mostra como a digitalização tem eliminado os deslocamentos diários ao trabalho. O e-commerce transformou o ato de comprar. As pessoas buscam economizar tempo e evitar o stress do trânsito.

 

Nas comunidades e nos condomínios, milhares de minimercados ou minifarmácias, em sistemas de autoatendimento, estão sendo implantados. Os novos lançamentos imobiliários passam a contemplar espaços reservados para o delivery. São fortes tendências de redução dos deslocamentos das pessoas nas cidades.

 

Se o ensino a distância já crescia no nível universitário, agora tornou-se inevitável, ao menos em alguns dias da semana, até para o segundo grau. Estudantes acessam o conteúdo das disciplinas sem sair de casa. Que tal uma aula com vídeos, imagens, gráficos e inserções de debates e pesquisas online no lugar de uma lousa perante uma plateia sonolenta?

 

Que tal um encontro uma vez por semana com avaliações e debates presenciais? Como em todas as mudanças, há pontos positivos e negativos a serem avaliados pelos educadores, uma vez que a tendência em diminuir as viagens diárias está presente mesmo entre os jovens.

 

O entretenimento digital, por meio de plataformas de streaming, revolucionou a forma como consumimos cultura e lazer. A possibilidade de acessar milhares de filmes, músicas e jogos de qualquer lugar, a qualquer tempo, com intervalos sob nosso controle, reduziu significativamente a ida a cinemas, teatros e shows, impactando diretamente a mobilidade urbana.

 

A substituição de reuniões presenciais por virtuais demonstrou não apenas ser possível, mas também eficiente. Cultos religiosos, velórios, audiências públicas, defesas de teses acadêmicas, com a participação de dezenas de pessoas, têm se tornado comum. Empresas observaram manutenção, e em alguns casos, aumento de produtividade em muitas reuniões virtuais. Acompanhamento da pauta, compartilhamento de apresentações, votações, pesquisas de opinião, criação de subgrupos para discussão são mecanismos que agilizam e organizam melhor muitas reuniões de trabalho. Tudo sem a necessidade de deslocamento dos participantes.

 

A telemedicina mereceria um texto exclusivo. Fiquemos nos aspectos ligados à mobilidade urbana. Consultas preliminares com médicos, nutricionistas, psicólogos estão ocorrendo a distância. Prescritos alguns exames clínicos, o primeiro encontro presencial fica mais eficaz. Na sequência, o acompanhamento em muitos casos continua online.

 

Até o início dos anos 2000, dezenas de milhares de pessoas iam diariamente aos bancos. Desde então, a digitalização dos serviços bancários teve forte crescimento. As mudanças foram drásticas. No Brasil, mais de 3 mil agências foram fechadas apenas nos últimos quatro anos. As que restaram ficaram menores, com raros atendimentos presenciais. Novos bancos surgiram oferecendo serviços exclusivamente online, sem agências físicas. Não há necessidade de uma agência para abertura de contas, transferências bancárias (TED, PIX), pagamentos, investimentos, empréstimos e mesmo para solicitar, desbloquear ou bloquear cartões de crédito. Ainda na década passada era comum ir ao banco descontar ou depositar um cheque!

 

Até mesmo a burocracia foi digitalizada, poupando idas e vindas a cartórios e a tantas outras repartições públicas. Hoje é possível renovar documentos, pedir inúmeras certidões, além de fazer consultas online. A autenticação de documentos digitalizados e a assinatura digital também ocorrem online. Dezenas de idas e vindas a órgãos públicos, até mesmo para a emissão de uma segunda via, foram eliminadas. Resultado: grande redução de viagens graças à digitalização.

 

As mudanças tecnológicas em curso levam a outras grandes mudanças que acabam afetando, e muito, a demanda por transportes urbanos. A digitalização levou à possibilidade de maior descentralização das atividades urbanas, ao fortalecimento do comércio de vizinhança, ao crescimento de novos subcentros dentro das cidades. A digitalização abriu caminho para as redes sociais que, por sua vez, fortaleceu a economia de compartilhamento. São mudanças comportamentais marcantes. Tudo levando à menor necessidade de longos deslocamentos, o que vem ao encontro da descarbonização de nossa economia, tão necessária para enfrentarmos as mudanças climáticas.

 

Ficam as perguntas: O que fazer para fortalecer o uso coletivo dos transportes? Como ajustar o uso e ocupação do solo das nossas cidades aos novos tempos? Como fazer com que essas mudanças socioeconômicas tornem nossas cidades mais saudáveis?

 

 

Jurandir foto biaFoto: Beatriz Arruda

 Jurandir Fernandes foi secretário de Transportes de Campinas e secretário de Estado dos Transportes Metropolitanos (SP). Presidiu a Emdec (Campinas), a Emplasa (São Paulo), o Denatran (Brasília) e os conselhos de Administração do Metrô-SP, CPTM e EMTU-SP. Coordena o Grupo de Transporte e Mobilidade Urbana do SEESP. É membro do Conselho Internacional do Centro Paulista de Estudos da Transição Energética (Unicamp) e do Conselho da Frente Parlamentar pelos Centros Urbanos (Brasília). É vice-presidente honorário da Associação Internacional do Transporte Público (UITP/Bruxelas)

 

 

 

 

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Comentários  
# Eng. CIVILJosé Augusto Moraes 08-04-2024 15:04
Visionário e futurista com pleno conhecimento das necessidades de transições modais específicas individuais e coletivas. Assim, vejo nobre colega incentivar as discuçoes para solução e aprimoramento do transporte público. Sussesso ao Mestre Jurandir.
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