Rita Casaro
Rosângela Castanheira: com o BIM, o computador passa a ser um canteiro de obras virtual, evitando erros e desperdícios. Foto: Acervo pessoalCom implantação gradativa e recomendação de utilização previstas em várias legislações e normas, entre elas a estratégia BIM BR, o Building Information Modeling (BIM) a cada dia está mais presente na rotina dos profissionais da área de engenharia, arquitetura e construção (Aeco). Compreender o processo e se qualificar para usá-lo, contudo, ainda pode ser um desafio para muitos, aponta Rosângela Castanheira, pesquisadora, docente e considerada uma referência no tema.
“Por não entender muito bem como era esse tal de BIM, muita gente pensou logo no caminho mais curto, que é aprender uma ferramenta. Só que a ferramenta, sem o processo, sem o caminho, é um carro desgovernado”, ilustra ela.
Tecnóloga em construção civil pela Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo (Fatec/SP) e pós-graduada em Gestão Estratégica de Custos, a professora em disciplinas de BIM e Engenharia de Custos possui certificação por notório saber em Engenharia de Custos pelo International Cost Engineering Council (Icec) e atua há 42 anos na área, 37 deles à frente da empresa Tríade Engenharia de Custos.
Atualmente, ela soma a essas atividades a parceria com o SEESP Educação – área do sindicato voltada a promover atualização, aprimoramento e aquisição de novas competências – no projeto BIM Prefeituras, que visa contribuir para a implementação da metodologia nas administrações locais. A iniciativa deve se estender às empresas privadas, inclusive pequenos escritórios de engenharia, e também promover cursos para capacitar os profissionais, ampliando suas oportunidades no mercado de trabalho.
Nesta entrevista ao Jornal do Engenheiro, Castanheira explica o que afinal é BIM, demonstrando sua importância para evitar erros e garantir assertividade na obra. Entre os grandes benefícios, destaca ela, está o acompanhamento de todo o ciclo do projeto, inclusive do ativo pronto, assegurando manutenção. Confira a seguir e no vídeo ao final.
O BIM já é muito presente na área de arquitetura, engenharia e construção, mas ainda não é algo tão conhecido para o público em geral. O que é o Building Information Modeling?
O BIM, o Building Information Modeling, é um processo de desenvolver projetos. E ele traz como novidade a possibilidade de desenvolver o projeto considerando uma terceira dimensão. E por que isso é legal? Porque a gente enxerga em 3D, não só largura e comprimento. Essas duas dimensões eram o que se conseguia com uma representação gráfica de plantas e cortes, que é o processo tradicional no bom e velho AutoCAD. A segunda característica é ser uma construção virtual. Em vez de desenvolver um projeto com cortes, plantas, elevações, a gente vai construir a nossa obra, o nosso modelo virtual, dentro do nosso computador. De maneira que o nosso computador passa a ser, fazendo uma analogia, o nosso canteiro de obras, o nosso terreno. E qual é a vantagem? Primeiro, você enxerga melhor as coisas. E segundo, os erros vão acontecer dentro do nosso computador e não lá na obra. Você enxerga antes tudo o que pode dar errado. Isso é uma baita vantagem porque cometer erros na obra sai caro, tem o retrabalho, gasta material de novo, tempo... E, sinceramente, a qualidade desse remendo não fica muito legal. Então, essa possibilidade de você melhorar a qualidade da sua obra é uma grande questão. E outra coisa: quando você faz um projeto, após a obra executada, todo mundo vira as costas e vai procurar um novo trabalho. O processo BIM enxerga o ciclo de vida da obra como um todo, principalmente na gestão dessa edificação ou dessa ponte. Era o que a gente chamava de manutenção, depois de um tempo veio como gestão de facilities e, dentro do BIM, tem a nomenclatura de gestão do ativo, que é a obra no uso para o qual o projeto foi desenvolvido.
O BIM já foi confundido com um software que, por exemplo, substituiria o AutoCad, como a senhora explicou. Ainda existe essa interpretação?
Ainda hoje, depois já de algum tempo, as pessoas fazem essa confusão. Mesmo o pessoal que já estava engajado no BIM cometeu alguns equívocos, dando muita importância à ferramenta. E parece que estão fazendo mea-culpa e voltando atrás. Mas essa confusão era uma brincadeira que até hoje a gente faz: “BIM é Revit, Revit é BIM”. Não! O Revit, que é o software mais conhecido para modelagem dentro do processo BIM, é uma ferramenta. [O que ocorreu é que], por não entender muito bem como era esse tal de BIM, muita gente pensou logo no caminho mais curto, que é aprender uma ferramenta. Hoje em dia você abre o YouTube, tem tutorial para fazer qualquer coisa, então você aprende o software. Só que a ferramenta, sem o processo, sem o caminho, é um carro desgovernado, minha gente! E o pessoal mais antigo meio que ficou falando sozinho durante um período, porque a moçada achou mais fácil começar pela ferramenta. Por quê? Dava menos trabalho de entender e de explicar. Só que esse caminho, que durante um período foi entendido como interessante, começou a dar problema. O pessoal começou a chegar em lugar errado, começou a ter acidente, porque não havia um mapa, não tinha uma trajetória, [que é trazida pelo] processo. E agora nós estamos numa febre de lembrar que BIM é processo, não é ferramenta. Alguns que se equivocaram enfim voltaram para a luz e perceberam que as ferramentas são muito importantes, mas que o processo para o uso delas é muito mais. Você consegue fazer projeto sem a ferramenta, como a gente fazia lá no tempo dos astecas, como o pessoal [brinca] hoje em dia. Me dá um lápis, uma régua e um papel que eu consigo fazer um projeto para você, dimensionamento e tudo mais. Agora, eu preciso de um processo para desenvolver. As duas coisas precisam se unir e trabalhar de maneira colaborativa.
Qual o conjunto de ferramentas e saberes necessários para que uma obra seja projetada, construída e depois mantida no processo BIM?
O BIM, como um processo, tem basicamente três pilares. Você precisa de tecnologia, e aí incluem-se hardware e software; de políticas (como se desenvolve a modelagem para cada uso); e envolve pessoas. E isso tudo cria procedimentos. A gente tem, hoje em dia, muitas ferramentas, não é um processo de um software único. É um problema que antes a gente não tinha porque todo mundo usava um CAD e conseguia trocar arquivos. Quando a gente faz essa migração, tem um leque de possibilidades que se adequam. Então você pode fazer tudo num software único, o Revit, por exemplo, ou o ArchiCAD, mas a gente tem que pensar na evolução para ferramentas que, além de gerarem um modelo, fazem o dimensionamento. É complicado, por um lado, no sentido de ter um investimento maior, mas, por outro, você agregou duas questões numa única ferramenta, você tem um software que faz o dimensionamento e já libera o modelo. Só que você precisa saber fazer isso, se preparar. Desenvolver um projeto, fazer um dimensionamento, seja lá do que for, não é uma coisa fácil. Por isso que a gente tem que ser graduado numa engenharia, fazer o recolhimento da ART (Anotação de Responsabilidade Técnica), ser responsável técnico pelo dimensionamento de alguma coisa que vai ser construída e vai morar gente ali dentro. Para cada disciplina, você acabou tendo com o tempo o que a gente chama de software especialista, mas que precisa ser pilotado por alguém que saiba [fazê-lo] e [conheça] o caminho também; esse é o pulo do gato. Nada é automático. Os processos precisam ser desenvolvidos. [Sobre a existência de várias ferramentas, fica] a questão sobre como esses programas conversam. Existe uma espécie de PDF, que unifica a extensão de arquivo, que é o IFC (Industry Foundation Classes), uma linguagem universal que faz com que todos esses softwares sejam entendidos uns pelos outros. Essa questão é mais uma coisa que a gente precisa aprender. Óbvio, não precisa virar um especialista em tudo, mas precisa estudar.
Com a popularização e o uso mais intensivo da inteligência artificial no setor produtivo, inclusive na engenharia, como ela entra no processo BIM?
É a bola da vez. Precisa tomar cuidado para a inteligência artificial não virar o que foram as ferramentas, o foco de tudo. A inteligência artificial é uma realidade, a gente precisa utilizar. Mas a gente precisa saber se comunicar; no BIM, a gente precisa entender o que a gente quer. Então tem uma brincadeira que eu faço: aprenda a pedir. E a IA é a mesma coisa. O pulo do gato da inteligência artificial é o tal do prompt, que tem a ver com a sintaxe no sentido gramatical, inclusive. [É preciso] tomar cuidado com esses vícios, "entrei para dentro", "subi para cima", "a luz dormiu acesa", essas coisas a gente não pode reproduzir, porque a IA não tem esse filtro. Assim como a ferramenta, precisa de um piloto e de um processo para que a gente entre com os dados e receba a informação. Mas é inegável, é uma ferramenta potente e que vem para agregar.
Não se pode achar que é uma solução milagrosa, que vai dispensar as pessoas de se qualificarem, de saberem o que estão fazendo e de se responsabilizarem por isso, certo?
Exatamente. Com relação ao BIM, a professora Michele Carvalho, da Universidade de Brasília (UnB), tem um dito que eu acho fundamental e sempre repito: “O M do BIM não é de mágica.” E é uma tendência a gente achar que tudo aquilo que é tecnológico tem uma mágica, que é só apertar um botão. E não é, a coisa é um pouco mais complexa. A IA é uma ferramenta que vai agregar, mas não faz sozinha.
Como se está hoje em termos de utilização do processo BIM no Brasil, que tem inclusive legislação sobre o tema?
A gente tem já desde alguns anos uma iniciativa do governo federal de incentivo ao uso do BIM em várias instâncias de projetos públicos, com uma programação de obrigatoriedade que foi diluída em vários momentos. Agora, em 2025, nós temos que entregar o pacote completo, que é o projeto, a compatibilização, quantitativos, orçamento e a parte de gestão do ativo, que é a manutenção. Por conta disso, a sociedade técnica envolvida nesse assunto começou a se movimentar junto com a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), e a gente tem já um conjunto de normas que precisam também ser estudadas, como a NBR 15.965, de classificação, que tem a finalidade de identificar e agrupar os elementos construtivos, para que eles sejam mais bem gerenciados dentro do modelo. A NBR 19.650, por exemplo, é importantíssima, e é fundamental que a gente a entenda como cada um dos envolvidos no processo de desenvolvimento de um projeto, usando o BIM, precisa interagir. Essa é uma norma de extrema importância. Uma que é uma prática recomendada, não uma norma, [que é fundamental], é a PR 1015, para a contratação de CDE, o ambiente comum de dados. É como se fosse um Google Drive ou OneDrive, mas um pouco mais inteligente. Ele abre os arquivos que são gerados nesses programas específicos e [propicia] que os profissionais envolvidos tenham uma interação ali dentro. Então isso facilita muito a gestão, que também é palavra de ordem do BIM. O BIM não pode ser entendido como um fim, e sim como um meio. Esse é um erro também do qual as pessoas estão se dando conta. “Nós temos que fazer BIM.” Tá, mas você não sabe nem para quê. Qual é o fim de você adotar BIM na sua empresa? É você melhorar a performance dos seus projetos e das suas obras. Qual é o meio para você conseguir esse fim? É a metodologia BIM.
A senhora é parceira do SEESP em iniciativas para ajudar empresas e órgãos públicos a fazerem essa implementação. Como é esse trabalho?
No SEESP a gente tem um grupo, capitaneado pelo Fernando Palmezan e pela Meire Garcia, formado por mais três profissionais, do qual eu tenho o privilégio e a honra de fazer parte, [que desenvolveu] um programa de implementação BIM em prefeituras. Isso porque o órgão público foi o primeiro a que a legislação sugeriu a adoção do processo. E a 14.133, a [atual] Lei das Licitações, finalmente entrou em vigor com um parágrafo que não diz ser obrigatório o uso do BIM especificamente, mas de qualquer tecnologia que propicie determinadas coisas. De uma maneira muito inteligente, não cita o BIM, porque isso é um nome, para não ter que mexer na lei [caso mude a nomenclatura]. Por que a gente focou nas prefeituras? Porque nem toda prefeitura é como São Paulo ou Campinas, que têm estrutura financeira. A gente viu uma possibilidade de o sindicato oferecer os seus serviços a administrações que têm menos recursos, retornando para a sociedade o investimento que é feito pelos profissionais. Esse é um projeto muito interessante, que tem tido uma aceitação muito grande, com retornos positivos e trabalhos em andamento. E agora a gente está começando a ampliar essa questão para as empresas particulares, de engenharia e arquitetura, inclusive as pequenas. O pessoal acha que BIM é só para empresas grandes, não é. O associado que tem um pequeno escritório pode fazer contato com o sindicato, que tem como entender a necessidade e apresentar um programa de implementação que seja adequado e caiba no bolso.
O projeto envolve também qualificar os profissionais?
Dentro do SEESP Educação, a gente tem um braço de qualificação profissional. Temos inclusive programado para julho um curso-base, totalmente online – com aulas ao vivo e possibilidade de tirar dúvidas – e gratuito, para justamente colocar todo mundo no mesmo patamar de entendimento do que é o processo BIM. E é muito importante, porque, apesar de ser uma coisa que já está aí há algum tempo, a cada dia chega gente nova no mercado. Veja que a gente está tentando dar uma base muito sólida para quem tiver interesse em trilhar esse caminho através do SEESP. E por que isso é importante? Porque o mercado precisa de gente qualificada. O campo da engenharia é muito vasto, e a gente precisa abrir esse leque de possibilidades.
Assista ao vídeo da entrevista