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Transporte como direito social e a tarifa zero

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Lúcio Gregori*

 

549OpiniaoPor conta das manifestações de 2013, a Proposta de Emenda à Constituição apresentada em 2011 para tornar o transporte coletivo urbano um direito social teve andamento acelerado e foi aprovada em setembro de 2015. Para ser efetivada concretamente, no entanto, precisa ser regulamentada, estabelecendo-se como se aplicará, na prática, esse direito.

 

Enquanto isso, segue em vigor o artigo 176 do Código Penal que diz “...utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento: Pena – detenção, de 15 (quinze) dias a 2 (dois) meses, ou multa”. Ou seja, é direito social ou crime usar transporte coletivo sem dinheiro para pagamento da tarifa?

 

Entendo que, como no Sistema Único de Saúde (SUS), só a plena gratuidade no uso do transporte tornará efetivo o tal direito social. Ou seja, tarifa zero é a forma efetiva de observância do direito social em questão.

 

Ocorre que em nosso país a questão tarifária no transporte coletivo é de longo tempo um enorme equívoco. Considerada a tarifa como o custo do passageiro transportado, comete-se um erro que a pandemia veio escancarar. Desabada a demanda, o que desabou de fato foi a receita, e não o custo do sistema, mostrando o óbvio: que passageiro é receita no sistema. Esse equívoco gera o ciclo perverso de aumentar a tarifa porque aumentou o custo do passageiro transportado, o que resulta em outra perda de passageiros transportados, e assim por diante.

 

Tudo isso, pasmem, vem desde 1817, quando D. João VI fez a concessão de um serviço de ônibus para o sargento-mor do palácio imperial. Desde então o serviço é sustentado pela tarifa, entendida como cobertura do custo do passageiro transportado, e é feito sob regime de concessão regulado, na prática, pela tarifa.

 

Mas tem mais... Como o sistema de transporte urbano de passageiros é um mercado monopsônico, oposto de monopólio, as concessões limitam áreas nas quais só pode operar um concessionário. Isso confere à garagem uma vantagem estratégica para a empresa que a detém numa determinada área. Não é à toa que uma mesma empresa opera uma área por anos e anos. Algumas se aproximam do centenário da concessão...

 

A tarifa desempenha não só o papel de cobrir os custos, mas também de funcionar como um limitador da plena mobilidade da imensa maioria da população, que não tem recursos para plena utilização do sistema e, assim, acessar os mais variados espaços da cidade, o que fica limitado aos de maior renda. Ou seja, um importante elemento para a reprodução de uma sociedade desigual e preconceituosa como a nossa. Conforme pesquisa da Rede Nossa São Paulo, mais de 50% dos entrevistados deixam de realizar visitas e atividades de lazer e 42% não fazem consultas médicas e exames, por conta do preço da passagem dos ônibus.

 

E desde a Constituição de 1988 os sistemas de transportes são de responsabilidade municipal, mas, na verdade, são uma questão nacional. Basta ver, nos dias de greve nos sistemas de transporte público, que as cidades entram em colapso. Se imaginarmos um dia de greve nacional no setor, o País vai parar de funcionar.

 

Então a regulamentação do direito social vai ter de considerar todos esses aspectos. Resumindo, a forma de concessão, a tarifa como custo do passageiro transportado etc. mostram que estamos absolutamente atrasados, e de modo farsesco, nessa questão.

 

Tem mais. Pasmem os leitores, tramita no Congresso um novo marco regulatório que mantém a tarifa de remuneração, agora separada da tarifa pública, e também a ideia de concessão. Ainda, propõe a utilização da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) dos combustíveis para financiar o sistema. Além de manter o conceito equivocado de tarifa, ainda usa uma contribuição como a Cide, que pode até mesmo ser revogada por decreto, ao invés de propor uma mudança, de fato, na tributação dos combustíveis. E tudo com muitos especialistas debatendo o novo marco, que de novo não tem nada, sendo apenas remendo daquele antigo de 1817. Pois é...

 

Se olharmos ainda o uso do sistema viário das cidades, veremos que o automóvel o ocupa majoritariamente e nada paga por esse desequilíbrio. Entendemos que é necessária a autorização federal para a criação de uma contribuição progressiva, em função de tamanho e potência dos automóveis, pelo uso do sistema viário. E isso diferentemente do chamado pedágio urbano, que é regressivo, pois quem tem mais pode pagar mais pedágios. Esses recursos ajudarão no subsídio tarifário (1).

 

Em palavras simples, que se estabeleçam as condições financeiras para a tarifa zero e a contratação do sistema por fretamento, ou seja, paga-se pelo custo operacional do sistema, já que a tarifa nada tem a ver com esse custo. Num sistema de fretamento, será possível dar fim às áreas exclusivas, desde que as garagens sejam municipais e alugadas para as empresas que fretarem seus veículos, possibilitando, assim, uma melhor concorrência, com prazos menores dos contratos e renovação de empresas prestadoras de serviço, e não concessionárias. Isso ajudará também na adaptação do sistema às mudanças tecnológicas e à urbanização das cidades.

 

Na prática, cada município poderá ter sua especificidade de fonte de recursos. Assim é que Vargem Grande Paulista implantou a gratuidade mediante um rearranjo no pagamento do vale-transporte, e Caucaia, no Ceará, com 365 mil habitantes, é a maior cidade com tarifa zero – e o fez, que se saiba, sem reforma tributária. Nos ônibus e no transporte público em geral, os séculos XX e XXI estão começando a chegar nessas cidades e em muitas outras...

 

É isso. Tarifa zero já!

 

 

 

Lúcio Gregori é engenheiro civil aposentado e ex-secretário de Transportes da Prefeitura de São Paulo entre 1990 e 1992, quando apresentou o projeto Tarifa Zero

 

 

* Colaborou Eng. Mauro Zilbovicius

 

(1) Detalhes da proposta, contatar Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

 

Imagem do destaque: Arte - Eliel Almeida / Foto Lúcio Gregori: Acervo pessoal

 

 

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