Olimpio Álvares
Ao término da 30ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30), realizada entre 10 e 22 de novembro de 2025 em Belém do Pará, a narrativa oficial destacou a suposta consolidação do multilateralismo climático, como uma das principais conquistas do encontro. No entanto, um exame mais atento da evolução do movimento climático revela que tal afirmação contrasta com a percepção de que o regime internacional de proteção do clima encontra-se em uma encruzilhada, marcado por frustrações acumuladas, contradições estruturais, credibilidade em declínio, e um evidente desalinhamento entre ambições declaradas e resultados efetivamente alcançados – especialmente no tocante ao persistente aumento global das emissões de carbono e, consequentemente, da concentração atmosférica de CO2.
Ao longo de três décadas, a governança climática multilateral estabelecida a partir da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima transformou-se em um dos mais ricos e sofisticados arranjos institucionais da política global contemporânea. Paradoxalmente, essa mesma arquitetura, construída segundo o ideal de coordenação ampla e inclusiva entre Estados soberanos – com características e conjunturas totalmente diversas –, parece ter se tornado inadequada para lidar com a magnitude, complexidade e a natureza transfronteiriça do problema climático.
A crítica recorrente, de que o multilateralismo climático falhou em atingir seu propósito fundamental – garantir reduções globais sustentadas das emissões de gases de efeito estufa em escala compatível com a suposta urgência climática – não resulta de simples frustrações políticas subjetivas; ela decorre de evidências materiais de que o carro está saindo fora dos trilhos.
As emissões globais, longe de apresentarem trajetórias compatíveis com as metas de reduções estabelecidas, cresceram substancialmente desde 1990; o próprio Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) alerta que, mantidos os atuais compromissos nacionais, o planeta tende a experimentar um aquecimento estimado entre 2,5°C e 3°C até o final do século, bem acima dos 2°C considerados aceitáveis. Essa discrepância entre a ambição normativa e o ritmo real de implementação das ações de mitigação e remoção de carbono da atmosfera reflete uma lacuna estrutural que se tornou impossível de ignorar como um aparente fracasso do movimento, uma vez que os debates e esforços institucionais da agenda oficial do clima já ocorrem pelo longo período de três décadas.
Em verdade, a governança climática tem funcionado, em essência, como uma plataforma de diplomacia permanente, na qual os inúmeros encontros internacionais, a retórica pura, os milhares de relatórios e os compromissos voluntários, substituíram o pragmatismo e a ação concreta e mensurável.
Processualismo climático
Esse desalinhamento decorre, em larga medida, da própria natureza “soft” do regime climático. Sem mecanismos coercitivos, sem sanções vinculantes e estruturado sob o princípio do consenso – o que na prática permite que um número reduzido de países bloqueie avanços essenciais –, o sistema tornou-se vulnerável a impasses. A presença de múltiplas instituições sobrepostas, fundos fragmentados e procedimentos excessivamente burocráticos, contribuiu para uma engrenagem institucional pesada, e com baixa capacidade de resposta. O crescimento exponencial de reuniões, grupos técnicos, relatórios e mecanismos de acompanhamento produziu um fenômeno já descrito por alguns analistas como “processualismo climático”, no qual o processo se torna um fim em si mesmo, dissociado dos resultados materiais esperados pelo movimento.
À essa fragilidade institucional soma-se a realidade incontornável dos interesses nacionais. O regime climático foi erguido sobre o pressuposto de que Estados soberanos, motivados pela crença numa racionalidade comum inexistente, ajustariam voluntariamente suas políticas energéticas, industriais e de desenvolvimento a metas globais de mitigação. Contudo, essa suposição revelou-se excessivamente otimista e irrealista.
Grandes potências como China, Índia e Estados Unidos têm economias profundamente ancoradas em combustíveis fósseis, dependências estruturais enraizadas que se amplificam em razão de mercados internos gigantescos, pressões por crescimento econômico contínuo, (em certos casos) por justiça climática, bem como por desafios sociais de relevância política.
Nos últimos anos, a agressiva competição geopolítica, ao invés de ser aplacada pelo imperativo climático, tem se intensificado, como evidenciam as explícitas disputas por semicondutores, baterias, minerais críticos, controle de reservas de petróleo, patentes de tecnologias de baixo carbono, hegemonia da indústria e comércio de tecnologias de geração elétrica e motorização automotiva, preservação de florestas etc.. Em tal contexto, a lógica do “free rider”, beneficiário dos bens públicos globais, tornou-se uma dinâmica praticamente inevitável: todos querem as benesses do esforço coletivo, mas ninguém deseja arcar com seu “fair share” de custos domésticos e globais imediatos da descarbonização (ações de mitigação, remoção e captura de carbono, preservação de florestas e adaptação).
Quem paga a conta?
Esse fenômeno é nítido no debate sobre responsabilidades diferenciadas entre Norte e Sul Global. Desde 1992, reconhece-se que os países industrializados contribuíram desproporcionalmente para as emissões acumuladas e, portanto, tem obrigação moral e política de liderar materialmente o esforço de mitigação e financiamento. No entanto, as promessas financeiras históricas nunca foram plenamente honradas; o comprometimento inicial de US$ 100 bilhões anuais entre 2009 e 2020, que deveria representar naquele momento um mínimo denominador comum de solidariedade internacional, sequer foi plenamente honrado. Esse fato é de uma gravidade simbólica determinante e indiscutível.
Além disso, uma parcela desses recursos que efetivamente se materializou, foi em forma de empréstimos, não de doações, transferindo aos países mais pobres um ônus financeiro adicional – para muitos, impagável. A frustração generalizada com esse quadro desequilibrado, e insuficientemente equacionado, alimenta tensões recorrentes e mina a confiança sistêmica necessária para qualquer avanço multilateral cooperativo mais engajado e profundo.
A complexidade se intensifica quando são observados casos específicos como China e Índia, que figuram entre os maiores emissores anuais de gases de efeito estufa, mas mantêm a classificação formal de países em desenvolvimento no âmbito da Convenção do Clima.
A China segue ampliando agressivamente sua capacidade de geração termelétrica a carvão e gás natural, além da nuclear (em abundância), justificando esse movimento como imprescindível para garantir segurança energética em um sistema nacional instável com crescente participação de fontes renováveis intermitentes (sabe-se que gigantescos bancos de baterias seriam física e economicamente inviáveis para este fim). Contudo, fatores internos – desde interesses provinciais de geração de emprego e renda, até de composição com cadeias industriais locais – desempenham papel igualmente determinante nas decisões paradoxais (do ponto de vista do clima) pelo incremento do parque chinês de geração fóssil.
Por sua vez, a Índia apresenta dilema semelhante: apesar de avanços expressivos, embora muito menores do que na China, em energias renováveis (solar, eólica e hidrelétrica) e nuclear, permanecerá ainda por décadas ancorada no carvão e, com menor participação, no gás natural.
Lembre-se ainda, que, tanto na China, quanto na Índia, a demanda por energia será drasticamente crescente em razão da expansão da classe média, urbanização, industrialização e da inteligência artificial (e seus data centers). E esse fenômeno também se aplica ao continente africano, sudeste asiático e América do Sul, o que confere à questão climática maior complexidade.
Nesses casos em destaque, a transição energética geralmente é, e será moldada na prática, não por imperativos climáticos virtuais de fim de século, mas por dinâmicas conjunturais atuais profundamente enraizadas, frequentemente incompatíveis com cronogramas acelerados de descarbonização propostos internacionalmente por elites intelectuais encasteladas em países socioeconomicamente resolvidos.
É nesse ambiente de fricção permanente entre ciência, cultura, sociedade, economia, política nacional interna e geopolítica, que emergem críticas mais profundas ao modelo conceitual do multilateralismo climático. O regime de proteção do clima foi concebido segundo o modelo westfaliano, que privilegia Estados soberanos como principais agentes da ordem internacional. Contudo, a crise climática é, por natureza, transnacional, sistêmica, global, não reconhece fronteiras e envolve atores cuja capacidade de ação frequentemente supera a de muitos Estados: corporações multinacionais, instituições financeiras, cadeias produtivas globais e plataformas tecnológicas. A governança climática, ao operar predominantemente numa arquitetura centrada exclusivamente em Estados, falha em integrar esses agentes transnacionais determinantes, limitando sua capacidade de produzir transformações estruturais concertadas em nível global.
A reviravolta de Bill Gates e o freio de arrumação
Às vésperas da COP30, a Nota Técnica de Bill Gates, intitulada “Three Tough Truths About Climate” (Três duras verdades sobre o clima), reacendeu o debate sobre conceitos fundamentais e características gerais do modo operacional do movimento climático. Gates, muito longe de poder ser considerado um “malvado” negacionista, reconhece a gravidade das mudanças climáticas, mas argumenta que a estratégia global precisa ser revisitada. Para ele, metas rígidas de neutralidade em prazo reduzido – especialmente quando dissociadas das realidades econômicas de países pobres – podem gerar distorções profundas, frustrar expectativas e, em última instância, desacreditar o esforço internacional de desaceleração do aquecimento organizado pelas Nações Unidas.
Segundo Gates, três pilares deveriam orientar a próxima fase da ação climática: (i) transferência massiva de tecnologia e recursos aos países carentes (que efetivamente cheguem à ponta, pois hoje ficam em grande parte no meio do caminho), de modo a permitir que avancem tecnológica e economicamente sem reproduzir trajetórias altamente emissoras; (ii) priorização de inovações disruptivas, acessíveis e de alto impacto, com potencial real de alterar a economia energética global; e (iii) adoção de ações consistentes de adaptação, reconhecendo que o aquecimento já está em curso (+1,4oC desde a revolução industrial) e poderá exigir no futuro respostas concretas para preservar vidas e infraestrutura – confira abaixo o ponto central da nota.
A ausência, na COP30, das principais lideranças de China, Estados Unidos e Índia – justamente os maiores emissores e atores centrais do regime climático – reforçou a percepção geral de que o processo atravessa um momento crítico. Em vez desta COP sinalizar o compromisso renovado de todas as partes, a ausência dessas, e também de outras lideranças de topo, pode ser interpretada como símbolo da erosão do multilateralismo climático e da dificuldade crescente de conciliar interesses nacionais westfalianos divergentes sob uma moldura comum. Assim, a governança climática segue como um instrumento diplomático com algum alcance, mas sua eficácia como mecanismo de indução à redução global de emissões encontra-se limitada por equívocos fundamentais.
Diante desse cenário, torna-se cada vez mais evidente a necessidade de reestruturar o regime climático internacional em bases mais realistas, operacionais e ajustadas às circunstâncias econômicas, tecnológicas e geopolíticas do século XXI. Isso implica reconhecer que metas excessivamente ambiciosas, desconectadas das capacidades reais de implementação, tendem a produzir frustrações, não resultados. Implica também admitir que a transição energética global não ocorrerá de forma homogênea, linear ou simultânea – e que mecanismos de cooperação mais flexíveis, assimétricos e pragmáticos serão necessários.
O debate revisório que ora se inicia pode constituir uma oportunidade para corrigir rumos, atualizar modelos e revitalizar o sistema como um todo. Nesse esforço, as reflexões de Bill Gates (militante histórico da proteção do clima), longe de representarem uma ruptura, podem sinalizar o início de uma nova fase do pensamento climático internacional, agora absolutamente alinhado com os relatórios técnicos do IPCC – menos dogmático, menos político, mais tecnológico e mais sensível às desigualdades globais.
A questão fundamental colocada por Gates, não é se o multilateralismo climático deve continuar existindo, mas se ele será capaz de se reinventar antes que a irrelevância o alcance. O desafio exige coragem política, clareza conceitual e capacidade institucional de absorver perspectivas heterogêneas, mas sem perder de vista a meta final de contenção das emissões globais.
Caso o regime consiga se reformular, poderá desempenhar com sucesso um papel essencial na mediação de interesses e na coordenação de esforços. Caso não consiga, tende a ser ainda mais esvaziado, e gradualmente substituído por arranjos paralelos, bilaterais, regionais ou mesmo privados, com consequências profundas na ordem internacional.
Olimpio Álvares é engenheiro mecânico formado pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli/USP), especializado no Japão e Suécia em controle de emissões veiculares e transporte sustentável. Ex-gerente da Cetesb, onde atuou por 26 anos no desenvolvimento de programas de controle de emissões de veículos. Atualmente é diretor da empresa de consultoria L`Avis Eco-Service, com atuação na área de emissões atmosféricas, transporte sustentável, mudanças climáticas e transição energética no setor dos transportes. Reconhecido nacional e internacionalmente, é autor de diversos artigos e publicações e participa ativamente em fóruns nacionais e internacionais sobre poluição do ar e mitigação das mudanças climáticas no setor dos transportes.
Aspecto essencial da Nota de Bill Gates de 28/10/2025
Um elemento central do freio de arrumação de Bill Gates em sua nova visão da questão climática, é o reconhecimento de um grave equívoco de conduta coletiva que marcou a discussão pública. A afirmação “97% dos cientistas concordam que o aquecimento global exige ação imediata” jamais decorreu de dados e conclusões dos cientistas do IPCC. Esse número nasceu do estudo de Cook et al. (2013), que simplesmente constatou um quase unânime consenso sobre a existência, em grau incerto, de contribuição de atividade humana ao aquecimento global; 97% nunca foi um consenso sobre a existência de emergência climática, catástrofes iminentes ou colapso civilizatório.
Como mostraram Rittel e Webber (1973), “Wicked Problems” (problemas perversos) são, por definição, aqueles cuja formulação depende de valores, percepções, julgamentos e tensões políticas, e não apenas de fatos científicos e decisões pragmáticas. A “mágica transmutação” do 97% em dogma político, reduziu essa complexidade da ciência climática a um slogan, criando uma distorção comunicacional de alcance massivo – algo que alguns especialistas (os poucos que ousam vocalizar) consideram intolerável.
Em verdade, o IPCC jamais utilizou em suas publicações técnicas originais termos como emergency, catastrophe ou existential threat. A propagada “urgência climática” foi uma deliberada construção política, midiática e não-científica, que se tornou uma pseudo-verdade, sobre a qual foi construído o conceito “Net-Zero” – carregando todas as suas consequências, envolvendo, inclusive, a inversão de prioridades de investimentos em políticas gerais de desenvolvimento nacional.
Além disso, a falsa e perigosa ideia do apocalipse climático iminente, provocou, especialmente entre crianças miúdas e jovens, uma epidemia de ansiedade, depressão, desânimo e descrença no futuro e na beleza da vida, com abrangência e consequências trágicas, que já estão sendo matéria de avaliação científica por muitos pesquisadores acadêmicos e estudiosos em todo planeta.
A Nota de Gates foge dessa comunicação alarmista e pretende fazer o movimento contrário: devolver a crise climática ao seu ambiente natural das incertezas estruturais e dos riscos socioeconômicos (Climate Change = Wicked Science) a serem equacionados ao longo das próximas décadas.
Mas ficaram sequelas da falsa propaganda, que demandarão tratamento adequado.
Referências bibliográficas
- Gates, B. Three Tough Truths About Climate. Technical Note, 2025.
Keohane, R., Victor, D. “The Regime Complex for Climate Change.” Perspectives on Politics, 2011.
- Ostrom, E. “Polycentric Systems for Coping with Collective Action and Global Environmental Change.” Global Environmental Change, 2010.
- UNFCCC. Report of the Conference of the Parties at its 30th Session. ONU, 2025.
IPCC. Sixth Assessment Report. IPCC, 2021–2023.






