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Prejuízos à engenharia e à sociedade com extinção da Dersa

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Soraya Misleh

 

Retirada da placa da Dersa na fachada de sua sede. Cessão: Ricardo GoulartEm processo de liquidação há três anos, a empresa Desenvolvimento Rodoviário (Dersa), fundada em 1969, vivencia 50 anos de know how de excelência se dissiparem. Ex-engenheiros da companhia e especialistas são unânimes em afirmar: a perda de conhecimento técnico é imensurável, com impactos sobre a capacidade de formulação do Estado de políticas públicas à mobilidade.

 

Proposição do então governador João Doria aprovada pela Assembleia Legislativa de São Paulo em 10 de setembro de 2019, a extinção da empresa consta da Lei 17.148/2019, que autorizou o Executivo a adotar providências necessárias para alcançar tal objetivo. A liquidação foi aprovada pouco mais de um ano depois, em 20 de outubro de 2020, pela Assembleia de Acionistas da companhia.

 

O tema voltou à baila após as movimentações do atual mandatário de São Paulo, Tarcísio de Freitas, no último trimestre, para acelerar a dissolução em curso. Entre elas, destinar crédito suplementar para as despesas decorrentes de cerca de R$ 33,9 milhões e autorizar a Fazenda a receber o imóvel sede da Dersa. Como consequência, os engenheiros remanescentes do seu quadro de pessoal – 28 no total – foram dispensados em julho e final de agosto último. Até 2019, somavam aproximadamente 75 de um universo de cerca de 500 funcionários.

 

O impacto vai além de postos de trabalho qualificados extintos. É o que ratifica o ex-secretário de Estado dos Transportes, engenheiro Dario Rais Lopes: “Difícil mensurar essa perda. Parte desse conhecimento técnico foi absorvida pelas concessionárias privadas. Assim, o cenário mais provável é que a incorporação de novas técnicas e avanços na engenharia rodoviária serão guiados por uma lógica privada.”

 

Rais assevera: “Sem uma empresa como a Dersa o Estado perde competência e agilidade para acompanhar os avanços da tecnologia rodoviária. Perde conhecimento para o aprimoramento e a formulação de políticas públicas robustas. E fica a reboque da iniciativa privada. Política de mobilidade é estratégica, o Estado tem de ter um papel de protagonismo.”

 

Presidente do SEESP, Murilo Pinheiro concorda: “Sua extinção é um equívoco lamentável. A companhia, com seus profissionais altamente qualificados e que detêm conhecimento e experiência inestimáveis no setor, cumpria papel fundamental no desenvolvimento do Estado. A iniciativa privada pode construir e operar estradas, mas não desempenhará essa função fundamental.”

 

Da esq. para a dir., Murilo Pinheiro, Dario Rais Lopes e Carlos Satoru: perdas à engenharia e ao desenvolvimento. Fotos: Acervos SEESP e pessoalProfessor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e consultor na área de transporte e mobilidade, Rais explica que a Dersa foi pioneira em planejar, projetar e construir rodovias classe especial (pista dupla, controle total de acesso, velocidade de projeto até 120km/h), “primeiro com a subida da Imigrantes, entregue em 1976, depois com a Bandeirantes, em 1978, e a Rodovia dos Trabalhadores, em 1982”.

 

Confira aqui informações sobre a construção da Rodovia dos Imigrantes.

 

Ele continua: “A empresa foi a primeira operadora de rodovias da América Latina a implementar um sistema de ajuda aos usuários, em 1976, na Via Anchieta, com telefones de emergência, ambulâncias, caminhões-guincho, oficinas móveis e viaturas de policiamento para ação em casos de emergência.” Já no final da década de 1990 e começo dos anos 2000, ainda segundo Rais, a companhia foi responsável pela então maior obra viária do país, o Rodoanel Mário Covas, “com seu trecho oeste todo em pavimento rígido”. Assim, resume: “A Dersa foi a principal referência para o desenvolvimento da engenharia rodoviária no Estado, a maior agregadora de valor à infraestrutura de mobilidade em São Paulo.”

 

Perda de expertise

 

A importância da companhia é atestada pelos seus ex-engenheiros, como Carlos Satoru, que dedicou cerca de 46 anos de trabalho à Dersa – o que, em suas palavras, lhe “proporcionou a escola prática de técnicas de gerenciamento de empreendimentos e obras principalmente rodoviárias, enquanto estudava em faculdades de tecnologia, de engenharia, [fazia] cursos de pós-graduação na área de transportes e infraestruturas, gerenciamentos de projetos e ambientais, entre outros”.


Rodovia dos Imigrantes, obra de arte da engenharia. Foto: Wikimedia CommonsAdmitido em 3 de junho de 1974, durante a fase de conclusão das obras da pista ascendente (trecho de serra) da Rodovia dos Imigrantes, e tendo ocupado diversos cargos, ele teve sua carreira na Dersa encerrada em 30 de novembro de 2020. Quando foi dispensado, ocupava a gerência de Planejamento. Satoru lembra que, com a extinção da empresa, o imenso acervo técnico passou às mãos do Departamento de Estradas de Rodagem (DER).

 

Essas plantas, mapas, desenhos de projetos, entre outros, encontram-se hoje no Arquivo Público do Estado, em atendimento ao Decreto 48.897/2004. Apesar da importância da preservação da memória, todo esse rico acervo técnico não deveria ter simplesmente como destino final o acondicionamento em caixas, como documentos de uma história que se encerra. Em vez disso, Nestor Tupinambá, diretor do SEESP, pleiteia a transferência de uma expertise adquirida na prática pelos engenheiros para jovens profissionais, que deixa de ser feita e seria basilar para a continuidade e o avanço em inovações e soluções no campo da mobilidade.

 

Satoru é categórico: “A perda de conhecimento técnico será enorme para todos, principalmente para aqueles que se preocupam com o caminhamento de um transporte planejado, inovador, sustentável. Se perderá uma expertise adquirida desde quando a Dersa foi instituída, em 1969, com desafios e inovações construtivas necessárias para vencer a subida da Serra do Mar com túneis e viadutos, que foi a Rodovia dos Imigrantes, adquiridos e até hoje utilizados nos projetos de grande porte. Experiência em gerenciamento e supervisão de obras de grande porte adquirida com a construção da Rodovia dos Bandeirantes e outros que se seguiram ao longo destes 50 anos, projetando, construindo e operando.”

 

Ao longo de cinco décadas de existência, segundo frisa Satoru, a empresa projetou e construiu rodovias que se apresentam sempre como as melhores do País. “Sem dúvida implicou de forma positiva e significativa a pujança da economia paulista e também nacional, melhorando a qualidade das estradas, reduzindo tempos de viagem, melhorando custos e qualidade de vida”, destaca. O especialista ilustra: “Com as estradas radiais na Região Metropolitana de São Paulo já próximas da saturação nos anos 2000, e com objetivo de reduzir o tráfego de passagem pelas Marginais, a Dersa construiu o Rodoanel Trecho Oeste e o Trecho Sul.”

 

Inovação e sustentabilidade eram primazia para a companhia, como continua Satoru. “E vinha, de alguma forma, ampliando seus objetivos nessa direção, quando foi designada para projetar uma travessia no estuário de Santos, optando por um túnel submerso com novas técnicas não utilizadas no Brasil, cujo início das obras está sendo cogitado para 2024”, relata. Para ele, projetos de impacto dessa natureza poderão ser perdidos na área de transporte.

 

Confira aqui o projeto “Submerso”, do túnel Santos-Guarujá.

 

Outro exemplo é o projeto “Trem Intercidades”, visando interligar a Capital às principais regiões metropolitanas: Sorocaba, Campinas, São José dos Campos e Baixada Santista. “Uma lacuna deixada, e que talvez nem tenha sido preenchida completamente antes, é ter uma empresa que se preocupe com transporte de forma integrada, inovadora.” Satoru exemplifica: “Sabemos que mais de 90% do transporte de carga no Estado de São Paulo é feito pelo modo rodoviário. E os demais, como ferrovia, dutovia, hidrovia etc., como vão?  As estradas no entorno da Região Metropolitana, como Dutra, Ayrton Senna, Bandeirantes, Anhanguera, Raposo Tavares/Regis Bittencourt, estão próximas da saturação e não há mais espaços para novas rodovias.” Na sua avaliação, esse “desequilíbrio estrutural” demandaria uma nova empresa no padrão Dersa para planejar e implementar soluções, com técnicos competentes.


A partir da esquerda, Ricardo Goulart, Carolina Tanus Hakas e Nestor Tupinambá: lacuna com extinção da Dersa. Fotos: Acervos pessoais e Soraya Misleh
Estagnação da engenharia de estradas, naval e de outras em níveis estadual e nacional. Essas são as consequências da extinção de uma companhia com tal know how, na opinião do engenheiro Ricardo Goulart, que trabalhou por 33 anos na Dersa, até sua demissão em agosto de 2020. Diretor do SEESP à época, ocupava então o cargo de assessor da diretoria de operações havia 13 anos.

 

Ele pontua: “A empresa acumulou know how na área de engenharia de tráfego, por exemplo, sobre como reparar rapidamente um problema na estrada sem prejudicar os usuários. Nas outras áreas, como as de projetos de estruturas e de estradas, onde havia engenheiros especializados, houve grande perda de tecnologia com sua extinção, pois não houve a transferência desta para outra empresa. Novas estradas não foram construídas, e o serviço hidroviário ficou estagnado.”

 

Entre os dispensados nos dias derradeiros da liquidação da Dersa está a engenheira Carolina Tanus Hakas. Tendo ingressado aos 19 anos ainda estudante na empresa, como estagiária, foi desligada em 30 de agosto último após pouco mais de 25 anos de carreira construída na companhia. “Durante esse período, percorri diversas áreas, incluindo Planejamento e Controle de Obras, Preços e Orçamentos e Medições, que proporcionaram uma formação profissional única e uma grande capacidade de adaptação em vários aspectos do gerenciamento de infraestrutura rodoviária e urbana.” Ela conta que participou “ativamente de viabilização, projeto, licenciamento, planejamento e execução de grandes empreendimentos, como Rodoanel Oeste, Sul, Norte, Nova Tamoios, Contornos São Sebastião e Caraguatatuba, Nova Marginal Tietê, Polo Itaquera, entre outros”, além de ter contribuído em “estudos de viabilidade de inúmeros novos projetos, incluindo o Submerso”.

 

Carolina Hakas não tem dúvidas de que “a perda de conhecimento técnico e inovação na logística intermodal do Estado de São Paulo devido ao encerramento da Dersa é significativa”. Ao longo de sua existência, a empresa, segundo ressalta, “não apenas executou projetos prioritários de alta complexidade com eficiência, agilidade e qualidade, mas também passou a atender demandas de diversos órgãos, realizando estudos de viabilidade, projetos e licenciamentos para novos empreendimentos”.

 

Trecho sul do Rodoanel, um dos grandes empreendimentos a cargo da Dersa. Foto: Portal DNITReferência em diversos setores, na área de operações, “além disso, estabeleceu parâmetros importantes na área social, com o Programa de Reassentamento do Rodoanel; foi modelo na implementação de programas ambientais junto aos órgãos licenciadores; realizou obras urbanas complexas sem a interdição da via; e a elaboração do projeto executivo do Submerso é uma tecnologia inédita no Brasil.”

 

Seu legado de excelência, assevera Hakas, perdura até hoje, “evidenciado no reconhecimento das rodovias que planejou, construiu e operou, mantendo-se entre as melhores do País. A gestão eficiente de diversos modais e o compromisso com a sustentabilidade socioambiental foram fundamentais para o desenvolvimento e a sustentabilidade das regiões abrangidas por suas intervenções”.

 

Assim, conclui: “A ausência de uma entidade responsável pelo planejamento e estruturação de projetos para a infraestrutura de transportes no Estado de São Paulo deixa uma lacuna importante. A Dersa desempenhava um papel crucial nesse sentido, oferecendo apoio técnico à Secretaria de Logística de Transportes.”

 

Tupinambá reforça que a empresa “pôs ordem na casa”, com seu trabalho avançado de pesquisa e desenvolvimento de estrada classe A, instituindo inclusive padrão de sustentabilidade para a construção de rodovias. Além de rever o erro de sua extinção e liquidação, ele acredita que seria “preciso recuperar conhecimento técnico que hoje se encontra disperso”.


Este seria um dever do Estado, uma vez que passa a ser responsável por todos os passivos e obrigações preexistentes da Dersa a partir de sua extinção. É o que explica o advogado Magnus Farkatt, assessor jurídico do SEESP em cujas mãos estão três dissídios coletivos de trabalho com a companhia, todos em meio ao processo de liquidação, relativos aos anos de 2021, 2022 e 2023.

 

 

Vídeos da construção da Rodovia dos Imigrantes e do projeto "Submerso". Fonte: Youtube DersaSPOficial

 

 

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