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Crônica da desindustrialização anunciada

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Soraya Misleh

 

O anúncio da Ford em 11 de janeiro último de fechamento imediato de suas fábricas em Camaçari (BA) e Taubaté (SP), bem como de Horizonte (CE) no terceiro trimestre de 2021, explicita as consequências da desindustrialização iniciada há pelo menos quatro décadas.

 

Esse processo não só não foi contido, como segue em franca aceleração. É o que aponta Paulo Kliass, doutor em Economia e integrante da carreira de especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, do governo federal.

 

Linha de produção da Ford, em Camaçari (BA), que acaba de ser fechada. Foto: Alberto Coutinho-GOVBA/Fotos públicasNão obstante, na sua ótica, a saída da Ford neste momento não era inevitável. “Houve muita falta de articulação entre os governos federal, estaduais e municipais para permitir isso. Não significa atender a indústria cegamente, tudo tem que ser negociado. Mas manter a montadora era fundamental ao País, pela geração de empregos e produtos de alto valor agregado.”

 

Segundo ele, a participação da indústria caiu de 27,5% em fins dos anos 1980 para 11% em 2019, de acordo com o último dado oficial. O especialista acredita que deve fechar 2020 com índice ainda mais baixo.

 

O alerta sobre a necessidade de rever esse quadro vem sendo feito há anos pelo SEESP e Federação Nacional dos Engenheiros (FNE). Esta última, em sua edição “Novos Desafios” de 2014 do projeto “Cresce Brasil + Engenharia + Desenvolvimento” – iniciativa que conta com a adesão do sindicato desde seus primórdios em 2006 –, inclui Nota Técnica sobre o tema.

 

Redigida pelo consultor da iniciativa Antonio Corrêa de Lacerda, atualmente diretor da Faculdade de Economia, Administração, Contábeis e Atuariais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon), revela a preocupação com a “longa estagnação da indústria”. E vaticina: “A perda de dinamismo do crescimento econômico brasileiro suscita o debate sobre a necessidade premente do aumento de investimentos e ampliação do valor agregado local. O crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) foi de apenas 2% ao ano, na média de 2011 a 2013, a metade do observado no período 2003-2010 [...].”

 

A Nota Técnica expõe a ampliação da vulnerabilidade externa, com incremento da dependência de importados e perda de capacidade de exportação. “Basicamente nossa geração de superávit comercial está cada vez mais restrita aos produtos básicos (o complexo agromineral) e os semimanufaturados.”

 

Em nota assinada pela engenheira Márcia Ângela Nori, presidente do Sindicato dos Engenheiros da Bahia (Senge-BA), a entidade ressalta: “Além da perda dos empregos, a saída da empresa do território baiano representa um retrocesso profundo no desenvolvimento tecnológico e na geração de empregos de alto valor agregado e com melhores salários. A Bahia [acaba de] dar um passo a mais rumo à conversão de sua economia na produção de commodities agrícolas e minerais.”

 

 

Desculpas a Gurgel

 

Engenheiro Amaral Gurgel: projeto nacional. Foto: Prefeitura de Rio ClaroKliass salienta que o Brasil fez essa opção. Exemplo é o abandono do projeto de produção nacional de automóveis. A referência é ao “carro popular” brasileiro, idealizado pelo engenheiro mecânico José Augusto Conrado do Amaral Gurgel, que apresentou ao Governo Itamar, em 1993, o projeto “BR Delta” de sua fábrica Gurgel, em busca de incentivo.

 

Em entrevista ao Jornal do Engenheiro, edição de março do mesmo ano, ele revelava: “O motor do Delta, que está sendo testado, é fantástico e tem autonomia de 300 mil km sem dar problema. [...]” O Brasil, portanto, tinha tecnologia nacional e condição de desenvolver automóveis. Mas não apoiou a iniciativa e abriu mão dessa possibilidade.

 

Na Nota Técnica para o “Cresce Brasil”, Lacerda atesta: “A desindustrialização made in Brazil não decorre de um movimento virtuoso de transformação qualitativa da indústria para áreas mais sofisticadas, mas de um processo de desmobilização de elos da cadeia produtiva local, substituída por importações crescentes.”

 

O caso Gurgel ilustra bem esse processo: pouco mais de um ano depois de apresentar o projeto "BR Delta", o engenheiro teve que fechar as portas de sua fábrica. Para Kliass, cabe uma autocrítica e um pedido de desculpas póstumas a ele, que faleceu em 2009 infelizmente sem ver seu sonho realizado.

 

 

Bonde da história

 

Além de mais investimentos, Lacerda propugna na Nota Técnica escrita em 2014 por mudanças nas políticas macroeconômica e industrial. Sete anos depois, o Brasil se mantém na contramão disso. Como destaca Kliass, falta planejamento público e protagonismo do Estado na economia, que devem ser recolocados na ordem do dia.

 

O especialista salienta ainda que “conglomerados, empresas, grupos industriais e financeiros precisam se adaptar à nova realidade – a indústria 4.0”. O processo de transformação impulsionado “por novas e emergentes tecnologias em serviços conectados, eletrificação e veículos autônomos”, além da crise sanitária, são as justificativas dadas pela Ford, em seu informe, para deixar o País depois de quase 102 anos desde a instalação de sua primeira fábrica em território nacional.

 

Aliado à desindustrialização, Breno Botelho do Amaral Gurgel, presidente da Delegacia Sindical do SEESP em Taubaté, observa que esse é um “fenômeno mundial” – e no Brasil o argumento da Ford então indicaria que esta perdeu “o bonde da história”.

 

Urge ao Brasil se recolocar nos trilhos, com o Estado, segundo ensina Kliass, “definindo setores estratégicos futuros que quer priorizar”. Entre eles, modais de transporte baseados em energia limpa, como os elétricos. Kliass conclui: “É preciso reindustrialização em novos padrões. Passou da hora.”

 

Murilo Pinheiro, presidente do sindicato e da FNE, não deixa dúvidas: “A recuperação da indústria, segmento fundamental ao desenvolvimento, demanda política industrial, para além de subsídios fiscais, como demonstra o caso da Ford. O Estado deve cumprir sua função de indutor do crescimento de maneira adequada ou o País seguirá à deriva.”

 

 

Consequências

 

Caso isso não seja feito, não se reverterá a tendência cujo sinal de alerta foi aceso com a saída da Ford do Brasil – o que, contudo, não foi um caso isolado. Em matéria no dia 17 de janeiro, o jornal O Globo revela que nos últimos três anos pelo menos outras 15 multinacionais de distintos setores cerraram suas portas.

 

No segmento automotivo, a Mercedes-Benz fechou a única fábrica de veículos leves que ainda mantinha no Brasil, localizada no município de Iracemápolis (SP), no dia 17 de dezembro de 2020 – no final dos anos 1990 já havia encerrado suas atividades em Juiz de Fora (MG). Precede ainda o anúncio da Ford o fechamento de sua linha de produção em São Bernardo do Campo, no Grande ABC paulista, em outubro de 2019, e na Capital, no ano passado. Como agora, isso culminou na perda de milhares de empregos diretos e indiretos.

 

Saída da Ford implica perda de tecnologia e empregos de alto valor agregado. Foto: Divulgação FordCom o encerramento das fábricas da montadora neste momento, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos (Dieese) destaca que as “5 mil demissões anunciadas pela Ford significam uma perda potencial de mais de 118.864 postos de trabalho, somando diretos, indiretos e induzidos”.

 

E aponta que essas dispensas “podem resultar em perda potencial de massa salarial da ordem de R$ 2,5 bilhões/ano, considerando-se os empregos diretos e indiretos”. Além de “queda de arrecadação de tributos e contribuições em torno de R$ 3 bilhões ao ano”. O órgão é categórico: “Cada R$ 1,00 gasto na indústria automobilística acrescenta R$ 1,40 no valor adicionado da economia.”

 

A presidente do Senge-BA  traz exigência na nota que leva sua assinatura: a devolução aos brasileirosdos incentivos fiscais pagos com dinheiro público, caso a empresa mantenha a decisão de sair do País. Além disso, defende que “a empresa deve implantar um programa de apoio econômico, de qualificação profissional aos empregados diretos e indiretos do complexo Ford”.

 

Parte do movimento sindical propugna ainda pela estatização do parque industrial da montadora e sua manutenção sob controle dos trabalhadores – o que é considerado um “cenário possível” para Kliass.

 

Trabalhadores protestam em frente aos portões da Ford. Foto: Sindicato dos Metalúrgicos de São PauloEnquanto trabalhadores protestam contra as demissões, os governos estaduais da Bahia e de São Paulo tentam negociar a compra da fábrica. Todavia, o presidente da Delegacia Sindical do SEESP em Taubaté pondera que “se não houver algum desenvolvimento industrial, o local, reformado recentemente e com instalações modernas, vai virar, nos próximos anos, incorporação imobiliária”.

 

A projeção de Breno Botelho baseia-se na realidade. Em São Bernardo do Campo, a compradora do terreno da Ford foi a Construtora São José, juntamente com uma empresa da área de gestão de recursos humanos, a Fram Capital. A venda foi concluída um ano após o fechamento da fábrica no Grande ABC.

 

Em nota sobre o encerramento da produção da Ford no Brasil, intitulada “É urgente recuperar a indústria nacional”, a FNE enfatiza que “a situação exige medidas urgentes para mitigar os efeitos negativos da decisão da empresa que, após um século de ganhos no Brasil, abandona o País em momento de crise econômica severa e emergência sanitária”.

 

Murilo Pinheiro conclui: “Para além do agravamento do desemprego com o fechamento de postos qualificados, o SEESP alerta para o processo de encolhimento do setor automotivo e da indústria brasileira como um todo, dinâmica que se observa há décadas, mas que vem recrudescendo nos últimos anos. A situação é particularmente preocupante do ponto de vista da engenharia e da tecnologia nacionais e de seus profissionais, que perdem oportunidades a cada dia.”

 

 

 

Arte da capa: Eliel Almeida. Fotos: Alberto Coutinho/GOVBA e Arquivo Ford. 

 

 

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