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Engenheiros devem cultivar a imaginação e apreciar o belo

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Rita Casaro 

 

WalterCarnielli AcervoPessoalWalter Carnielli: machine learning exige extrema imaginação, não só matemática.
Foto: Acervo pessoal

Nem só de sólida formação técnica e vasto conhecimento de física e matemática vive um engenheiro de sucesso, especialmente diante das oportunidades trazidas pelas novas tecnologias e o mercado de TI. Quem afirma é o matemático Walter Alexandre Carnielli, professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da mesma instituição.

 

Defensor da aproximação entre ciências exatas e humanas, tema que abordou no Fórum Permanente da Unicamp realizado em agosto último, ele critica a cisão de origem medieval entre o Trivium (lógica, retórica e gramática) e o Quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música) e alerta para a necessidade de os profissionais serem capazes de manejar as diversas ferramentas disponíveis, sem “terceirizar” competências. “A atividade de machine learning hoje não precisa de muita matemática. E por que é tão difícil fazer Inteligência Artificial? Porque não basta isso. Tem que ter uma atitude completamente humana, uma imaginação criativa absurda”, afirma.

 

Também imprescindível nesse cenário e sem solução por meio de equações diferenciais ou teoremas, destaca o professor, está a ética. “É uma atividade filosófica e humana, temos que ter atitude para separar o bom do ruim”, resume. A boa notícia nesse campo, arrisca ele, é a indicação de que os brasileiros estão ainda que timidamente desenvolvendo o ceticismo positivo e o espírito crítico. Um sinal seria o interesse no curso a distância "Pensamento crítico, lógica e argumentação", que ele ministra juntamente com outros docentes pela Unicamp e plataforma Coursera. "São 8 mil alunos", comemora. 

 

Nesta entrevista ao Jornal do Engenheiro, Carnielli ressalta a importância das artes e da apreciação do belo e defende avanços em pesquisa e educação como responsabilidade fundamental do poder público. Confira a seguir e no vídeo ao final.

 

Como se deu esse divórcio entre as ciências exatas e as humanas?
Tem pelo menos duas fontes. Primeiro, a histórica, medieval, que é a diferença entre o Trivium – retórica, lógica e gramática – e o Quadrivium – aritmética, geometria, astronomia e música. É dessa ideia que vem o adjetivo pejorativo “trivial”; alguma coisa trivial tem a ver com o Trivium. Essa é uma tese que precisa ser validada pelos historiadores e pensadores da filosofia da educação, mas, para mim, fica muito óbvio que vem dali. E aí surge uma espécie de orgulho nas duas partes. Aquele pessoal das humanas que fala “detesto matemática, tenho horror, não preciso e vivo muito bem sem isso”. E do outro lado, “detesto um poema”. Já ouvi engenheiro falar: “para que serve um poema?”. Tem que entender que existe o uso simbólico das coisas, nem todo uso é comercial, industrial, financeiro. Na hora que entendem isso, começam a se misturar as duas vertentes e a verificar o que a outra tem a oferecer.

 

O que se perde tanto na engenharia quanto nas humanidades com esse distanciamento?
Eu arrisco um palpite: ocorre a terceirização. A matemática é uma ferramenta maravilhosa e linda; quem não entende a sua beleza está perdendo. A competência linguística é outra ferramenta maravilhosa; saber escrever, falar, entender o que está por trás das coisas. A razão, a dialética retórica, o pensamento crítico e a argumentação, a capacidade de se colocar no lugar do outro, entender as premissas do outro, são também. O que eu chamo de terceirização? É quando a pessoa não percebe que ela é o usuário dessas ferramentas, que não pode jogar na mão da competência técnica algo que tem que fazer. Ela é o motor, o centro do uso dessas competências. Eu tenho que usar bem a matemática, a linguagem. Tenho que dominar. Uma ferramenta a mais só me enriquece. Se eu leio Dostoievski, Saramago, o que interessa? Muito! Me abre a cabeça, a percepção, a maneira de olhar. Às vezes, a atividade de machine learning não precisa de muita matemática, qualquer pessoa que fez engenharia ou física consegue masterizar, dominar. É uma coisa chamada álgebra linear, cálculo de vetores, probabilidade, estatísticas, cálculo integral. E por que é tão difícil fazer Inteligência Artificial? Porque não basta isso. Tem que ter uma atitude completamente humana, uma imaginação criativa absurda para transformar essa linguagem matemática, que nem é muito sofisticada e não vai fazer nada sozinha. Outro exemplo é a criptografia RSA, que no momento é que domina cartão de crédito e transações bancárias, inclusive blockchain. É uma forma maravilhosamente criativa de inventar um protocolo de transações que usa uma matemática que nem é tão sofisticada e é absolutamente eficiente. Não é só a matemática que vai resolver a parada, é a sua imaginação, que não pode ser divorciada das ciências humanas, do cinema, da literatura, da criatividade musical. Não vejo como quebrar isso no meio. É um bloco só. Estou tentando convencer as pessoas disso.

 

Então até em face das novas tecnologias, que representam importante campo de atuação, os engenheiros devem se voltar às humanidades?
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Eles devem se voltar ao imaginário, que não é técnico, não é uma equação diferencial. Eu mencionei como brincadeira no Fórum Permanente da Unicamp o “Teorema do Equilíbrio”, que não existe. Não tem nenhum teorema que vai dizer onde se situar, é uma atividade humana. Muita gente acha que se apoia num teorema, mas não é o caso. O imaginário é essencial. Trabalhei como consultor numas empresas alemãs onde eles usavam muito o Unreal Engine, que é uma grande plataforma que produz efeitos especiais para filmes. Mas muita gente está usando para fazer engenharia. Para imaginar um produto pronto, explicar aquilo e depois ir desconstruindo para ver o que precisaria. Tipo, uma impressora 3D que constrói um prédio de apartamentos. Como seria? Qual o efeito? Quanto pesa? O que usa de água? Não é uma atividade sintética, é analítica: imagina o todo global e vê se tem sentido. Talvez não tenha, mas é muito mais barato que construir dez protótipos, levar cinco anos e quando terminar, já não tem mais interesse. Para usar o Unreal, você tem que ser muito imaginativo. Quem sabe mexer com isso tem bons empregos. Tem uma coisa chamada GPT 3, que acho fabuloso. Uma super-rede neural criada pelo pessoal do Elon Musk, que tem bilhões de camadas de neurônios artificiais. Esse monstrinho varre a rede, só dedicado à linguagem escrita, mas tudo o que tem de literatura na internet, em todas as línguas. Poesia húngara, literatura coreana, Shakespeare, Machado de Assis... Esse monstrengo passa o tempo vagabundeando pela internet, aprendendo e classificando tudo. Você escreve um texto e pede que transforme em inglês shakespeariano, e ele faz. Também pode ser usado para criar fake news, por exemplo sobre um certo candidato. Pega tudo o que já foi escrito sobre uma pessoa ou por ela e arma uma arapuca que cai como uma bomba, todo mundo vai acreditar. Há ferramentas fantásticas, essa é só uma delas. A proposta do metaverso, de realidade virtual imersiva, é outra. Você vai poder fazer uma festa de aniversário completamente virtual, bater nas costas, apertar a mão, e ninguém está lá. Pode até sentir o abraço do outro. Isso envolve uma mudança enorme na economia. As escolas de engenharia, especialmente as particulares, estão enganando as pessoas, dizendo “vou te preparar para o mercado de trabalho”. O mercado não quer saber só de alguém que aprendeu cálculo 2 ou 3 e um pouco de estatística, quer alguém que transcenda isso. As públicas são um pouco mais independentes, mas mesmo nelas você vê que a pessoa de ciências sociais e antropologia dificilmente se aproxima do pessoal da física e da engenharia.

 

Como refazer essa reaproximação? Que caminho os engenheiros deveriam seguir para isso?
Literatura, cinema, história da arte, procurar as coisas que estão fora da sua área. A internet está repleta de possibilidades, tem tudo quanto é porcaria, mas também tudo quanto é coisa boa. Tem que separar o joio do trigo, mas uma pessoa inteligente consegue. Quem domina isso está na ponta. E se não prestarmos atenção, vamos separar o mundo entre dominados e dominadores. Aqueles que compram e consomem o que está pronto e aqueles que produzem para suprir o mundo e que vão ganhar poder.

 

Os engenheiros devem então cultivar a imaginação e aprender a apreciar o belo?
A imaginação é uma ferramenta tão bacana quando equações diferenciais, cálculo, teoremas de Green, Galois, Stokes, probabilidade, álgebra linear, vetores. A lógica hoje é de suma importância para a computação, assim como o cálculo integral é para a engenharia. O que estamos fazendo hoje vamos usar daqui a 50 anos, mas tem que ser feito. Quando Newton e Leibniz inventaram o cálculo integral diferencial, não sabiam que seria usado por todos os engenheiros do planeta no século XXI. Os engenheiros têm que 559EntrevistaDestaques2usar a imaginação como uma ferramenta deles. E vice-versa: o pessoal das ciências humanas tem que se cercar de ferramentas racionais como probabilidade, matemática. Tem uma montanha de livros sobre isso. Um é “Narrative Economics”, do Prêmio Nobel de Economia, Robert Schiller. Ele defende a ideia de que tem que estudar as narrativas, que movem o mundo da economia, mais que os prognósticos. São as narrativas que fazem a bolsa subir; as guerras são baseadas em narrativas. Outro é “A lógica do Cisne Negro”, de Nassim Nicholas Taleb, que mostra o que significam fenômenos de quase probabilidade zero e que atitude humana devo ter; não se trata só de estatística.

 

E como entra o fator ética nessa discussão?
A ética entra sempre, não se resolve com fórmula matemática. É uma atividade filosófica e humana, temos que ter atitude para separar o bom do ruim. Eu estava esperando uma explosão de deep fakes na campanha eleitoral, mas muita gente agora já sabe o que é e está alerta, não passa muito. Passa durante um par de dias e depois alguém denuncia a fraude. Parece que essa atitude de dar um pouco mais de atenção ao pensamento crítico, à argumentação, desconfiar, ter a atitude cética positiva, começou muito timidamente a interessar aos brasileiros. “Não sei, suspendo o meu juízo e vou buscar mais evidências.”

 

Em linhas gerais, qual seria o modelo de educação ideal para que as pessoas tivessem uma formação mais completa?
As escolas e as universidades têm que se preparar melhor, o que cabe ao governo e à sociedade. Um exemplo é a TV pública, que deveria, ao invés de fazer propaganda, ser parecida com a BBC inglesa e patrocinar literatura, cinema, história da arte e das ideias. As universidades deveriam ser menos tímidas em incentivar a divulgação científica. Tenho tentado fazer um canal explicando problemas simples de matemática, não porque acho útil, mas porque acho bonito, é o belo. A universidade não proíbe, mas também não ajuda. As escolas [têm problemas], os professores são malformados, é um negócio gigantesco. Enquanto não tivermos um governo que olhe isso com cuidado, não vai acontecer nada. Essa é uma crítica que faço não só a esse governo, que está pior, mas aos outros também. Muito pouco disso foi levado em conta. No Brasil, ainda não entenderam que um país não pode só vender soja e milho, tem que vender também ideias, ciência, superioridade científica. Isso só com financiamento público, nada é feito sem isso. A pesquisa, a educação, a formação intelectual têm que ser regidas pelo financiamento público, não tem outra maneira. Como será feito isso? Um decreto não resolve. A sociedade como um todo tem que pedir, é um movimento.

 

 

Saiba mais

Cursos 
 "Pensamento crítico, lógica e argumentação" (Coursera/Extecamp-Unicamp)
Curso gratuito, a distância

SPLogIC: Escola São Paulo de Ciência Avançada em Lógica Contemporânea,
Racionalidade e Informação

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Livros
Walter Carnielli e Richard L. Epstein. “Pensamento crítico – O poder
da lógica e da argumentação
Rideel; 2019

Robert J. Shiller.  Narrative economics: how stories go viral and
drive major economic events
Princeton University Press; 2019

Nassim Nicholas Taleb. “A lógica do Cisne Negro: o impacto do
altamente improvável
Objetiva; 2021

 

Assista ao vídeo da entrevista

 

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