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30/08/2019

A velha mobilidade é posse, a nova é serviço, diz Jurandir Fernandes

Revista NTUrbano

                                                                                                                                                                                                                                                              Foto: Divulgação NTUrbano
jurandir no congresso internacional red"A velha mobilidade é posse, a nova é serviço". Para o presidente da Divisão América Latina da União Internacional de Transportes Públicos (UITP), Jurandir Fernandes, essa é a principal mensagem deixada pelo Congresso Mundial de Transporte Público 2019. É chegado o momento de dizer adeus ao que é velho e saudar o novo. Esse foi o sentimento que contagiou os 2.700 delegados inscritos e os 15 mil visitantes da feira que integrou a edição 2019 do Congresso Mundial de Transporte Público, promovido pela União Internacional de Transportes Públicos (UITP) entre os dias 9 e 12 de junho em Estocolmo, na Suécia. O evento reúne, há 130 anos, entidades e profissionais do setor de todo o mundo para debater estratégias para uma mobilidade urbana sustentável e inclui ainda uma exposição com inovações, soluções e produtos que são tendência — somente este ano, 470 expositores participaram. Estiveram representados cerca de 45 países.

O presidente da Divisão América Latina da União Internacional de Transportes Públicos (UITP), Jurandir Fernandes, comemora os resultados e, em entrevista à revista NTU Urbano, revela os frutos do evento, comenta sobre tendências e obstáculos do transporte público no Brasil e no mundo, e lança o desafio: revolucionar o modo de pensar e fazer mobilidade urbana.

“De 10 anos para cá, os cidadãos retomaram a mobilidade antiga, com uso de bicicletas, o andar a pé, isso tudo é revolução de comportamento. Estamos vivendo um momento muito bom para a mobilidade urbana, ela está no centro dos debates políticos, então temos que aproveitar e colocar na mesa a pauta da mobilidade como serviço”, destaca Jurandir.
Jurandir Fernandes é coordenador do Conselho Assessor de Transportes e Mobilidade Urbana do SEESP. Engenheiro, possui PHD pelo LAAS - Laboratoire d ‘Automatique e d’ Analyze des Systèmes de Toulouse, na França. Possui mais de 30 anos de experiência no setor de transporte público. Ocupou o cargo de Secretário de Transportes Metropolitanos de São Paulo, onde desenvolveu o maior plano de investimentos no setor da América Latina.

Confira a íntegra da entrevista publicada na edição 39, de maio/junho deste ano.

 


Fotos: Beatriz Arruda

interna seespJurandir Fernandes durante evento seminário Redefinindo a Mobilidade, no auditório do SEESP, em 12 de agosto último.


Quais os principais temas abordados no congresso e que balanço o senhor faz?

O mais importante do evento, que acontece a cada dois anos há mais de um século, é que ele teve alta participação nesta edição. Foi o maior que já tivemos, em um espaço amplo em Estocolmo e com grande adesão: foram milhares de participantes de cerca de 45 países. O congresso foi estabelecido em sessões técnicas, que se basearam em sete grandes eixos de discussão em torno de todas as tendências da mobilidade. Discutimos temas como excelência no atendimento ao cliente, planejamento e governança, inovação, novos talentos e novas habilidades do futuro, eficiência operacional e financiamento do setor. Foi extremamente positivo realizar um evento com uma abrangência tão grande.

Qual foi o ponto alto dos debates?

O ponto alto vem se delineando nos últimos quatro ou cinco anos, e dessa vez ele ficou muito mais claro: o transporte público continua sendo a espinha dorsal de toda a mobilidade urbana. A espinha dorsal está nos ônibus, grandes corredores, metrôs, trens... Agora, também integra o sistema de transporte público uma série de outros serviços, como micro-ônibus, bicicletas, patinetes, sistemas de táxis e de aplicativos: todos complementam os ônibus, especialmente no Brasil, que transporta cerca de 90% da população por meio deles. Isso já está bem estabelecido e pacificado. A grande tônica que envolveu essa realidade foi a necessidade de integrar e combinar todos os modais com o objetivo de alcançar uma mobilidade urbana eficiente.

interna seesp 3E quais as principais tendências mundiais para a mobilidade urbana e o transporte público?

A novidade que está cada vez mais clara nos últimos anos é, na realidade, uma grande mudança de comportamento. O carro deixou de ser um objeto de desejo. As pessoas estão deixando de lado a vontade de possuir para poder compartilhar. Assim, a mobilidade deixa de ser algo ligado à posse para tornar-se um serviço. É a chamada Mobility as a Service (MaaS), que significa, literalmente, mobilidade como um serviço. Essa é a grande bandeira. Hoje, sabemos que uma cidade do futuro, saudável, eficiente e com qualidade de vida é aquela em que podemos viver sem carro. Você não precisa ter um automóvel, e nem mesmo uma bicicleta. A economia do compartilhamento e a digitalização são as duas grandes ferramentas da mobilidade urbana atual. A mensagem mais forte que o congresso passa é que a mobilidade deixa de exigir uma propriedade e passa a ser vista como um serviço prestado. Aí vem a discussão: como esse serviço vai ser prestado?

Isso pode ser aplicado à realidade brasileira?

É preciso ter uma autoridade única do transporte. Nós temos dificuldade com isso no mundo, especialmente na América Latina, pelo excesso de órgãos desempenhando a mesma função em uma única região. É um desastre. Isso atrapalha quem administra e quem opera o serviço, todos ficam sem saber em que direção seguir, pois é muita gente dando palpite, cobrando taxas e impostos... Muitas vezes, você tem, na mesma cidade, um órgão municipal, um estadual e um federal; e, para prestar um serviço, precisa tirar licença nos três, sendo que eles não se falam e não planejam conjuntamente. Dessa forma, o grande atraso que temos que tirar, além do fator tecnológico, é o atraso institucional. Temos que melhorar, principalmente nas regiões metropolitanas, criando uma autoridade única no transporte.

No cenário dos ônibus, o que se pode esperar para o futuro?

Notamos um crescimento muito grande da eletrificação. Há uma tendência mundial de fazer com que o transporte público — desde o táxi, passando pelas bicicletas, até os ônibus — seja todo eletrificado. Pela primeira vez, deu para perceber claramente que todos os ônibus que estavam sendo lançados na feira eram elétricos. Então, o transporte por ônibus como espinha dorsal, a urgência em integrar os modais e a criação de uma autoridade única se unem a esse outro ponto-chave. É preciso dar sustentação aos empresários e aos operadores e concessionários para fazer essa mudança. A eletrificação tem algumas dificuldades muito fortes, como, por exemplo, quem vai financiar toda essa mudança? Os veículos estão muito caros, pois a demanda é baixa; e a demanda é baixa, pois está caro andar de ônibus. Como romper esse ciclo vicioso? Com uma política de governo, de incentivo e financiamento para o setor. Há, ainda, a questão operacional, de logística dentro das garagens. É uma dificuldade grande introduzir ônibus elétricos e ter boas equipes de manutenção para os ônibus comuns e os elétricos. Isso tem um custo. E uma terceira questão é a segurança no fornecimento da recarga das baterias. Como serão os pontos e a política de recarga? À noite, com todos os ônibus juntos, ou em trânsito, por meio de pontos de recarga rápida durante o dia? A boa notícia é que teremos a maior frota do mundo ocidental em uma única cidade, aqui perto, em Santiago, no Chile, que comprou 600 ônibus elétricos. O país estudou muito e tem uma boa visão do que quer, então será um bom lugar para acompanhar.

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E quanto aos veículos autônomos?

É uma tecnologia que também está sendo muito abordada em todos os encontros atuais. A dois congressos atrás, em 2015, havia uma ou duas linhas sobre isso, embora, naquele mesmo ano, tenhamos tido um teste com um veículo que saiu de Vitória e foi até Guarapari (no Espírito Santo) em uma viagem 100% autônoma. A evolução desses últimos quatro anos foi mostrada nesse congresso, com um impressionante número de veículos. Várias montadoras de grande porte apresentaram veículos autônomos pela primeira vez. Linhas de BRT com veículos conduzidos de forma autônoma, em um centro de controle operacional, já vêm sendo pensadas. E tais veículos já estão sendo desenvolvidos, podemos tê-los muito em breve, em cinco, no máximo 10 anos. É uma tendência que parece assustadora, afinal, imaginamos para daqui a 20 ou 30 anos, mas está perto. Importante ressaltar que a UITP não vê com simpatia o carro autônomo, estamos falando de ônibus autônomos. Trocar um carro individual por um autônomo é substituir o congestionamento de carros de hoje por um congestionamento de carros autônomos. Nossa luta é para que a autonomia venha para o transporte público, caso contrário vamos trocar seis por meia dúzia. Além disso, essa é uma tecnologia que tem vantagens e desvantagens. A desvantagem clara é o aumento do desemprego setorial, que vai percorrer diversos setores da economia. A vantagem está na fácil operação, que possibilita mudar a oferta conforme a demanda, sem precisar convocar uma tripulação. No entanto, não é uma necessidade do Brasil no momento, temos muitos desempregados. Sendo assim, não é uma luta que vamos travar agora, mas devemos alertar para as tendências, e os veículos autônomos estão vindo numa velocidade inacreditável.

Ou seja, não dá para ignorar...

Não dá para ignorar. É aquela história, não é certo ficar forçando uma situação, como é o caso de haver ascensoristas até hoje no Brasil. Uma pessoa dentro do elevador apenas para apertar um botão, sendo que os elevadores estão cada vez mais inteligentes. Depois de 40 anos de tecnologias, ainda temos cobradores dentro dos ônibus, ao passo que a moeda está sumindo de circulação. Estivemos uma semana inteira em Estocolmo e não vi a moeda local, não sei descrever uma nota de coroa sueca. Há uma série de funções no Brasil que só existem por pressão corporativa, sindical. Mas até onde isso é suportável numa economia? Precisamos reciclar e modernizar nossa força de trabalho, criar novas atividades, novos cursos. Mas esse é o dilema que a quarta revolução traz para todo o mundo, e não só para o Brasil.

Há também a tendência do transporte sob demanda, correto?

Sem dúvida. Esse é um outro ponto-chave para os ônibus começarem a trabalhar. A população, hoje e cada vez mais, quer a flexibilização do transporte público. É mais ou menos o que o carro propiciava, de acesso a qualquer hora, para ir aos locais em que se deseja e sem parar a todo momento. Itinerários fixos, com pontos e horários fixos, devem existir nos grandes corredores. Mas, na capilaridade, principalmente nos bairros, nos entrepicos e aos fins de semana, o que se estuda é o transporte sob demanda. Você chama um ônibus pelo celular, por meio de aplicativo, e ele lhe atende formando itinerários em comum ou semelhantes com outras pessoas para deixá-las em seus destinos. É como o aplicativo de transporte individual, mas coletivo.

Mas como avalia a realidade da mobilidade urbana brasileira? Estamos prontos para tais avanços?
Um aspecto precede tudo isso e é ainda mais importante e fundamental: que nossos gestores e legisladores flexibilizem e modernizem a legislação. Não adianta nada pensar em novas tecnologias em cima de um arcabouço institucional esclerosado, velho, que representa o século passado. Estamos vivendo esse dilema na América Latina e, particularmente, no Brasil: temos avanços tecnológicos imensos chegando,mas uma legislação rígida, que não dá liberdade ao concessionário de criar linhas flexíveis e um transporte sob demanda. Tudo tem de ser verificado com muita urgência, porque, se os nossos empresários não puderem fazer as mudanças, outros farão. É só lembrar que o Uber não era operador de transporte público nem de táxi. O Airbnb também não era dono de cadeia de hotéis. Então, se nada for feito com agilidade pelos nossos governantes e assimilado pelos operadores, podemos ser pegos de surpresa por empreendedores de fora do setor. O governo deve olhar para o futuro pensando em como ter uma política para o transporte público urbano, financiando, investindo em infraestrutura, em corredores e terminais, e fortemente em telecomunicações, pois, atualmente, tudo se resolve com internet e GPS, e vem vindo aí a tecnologia 5G. Se nossos legisladores e governantes não olharem para o futuro, vamos ficar amarrados a esse passado.


Como o senhor analisa os programas de priorização do ônibus em sistemas como o BRT?

A evolução é muitíssimo lenta. É impressionante, veja o caso de São Paulo: a cidade que mais precisaria ter BRT e corredores exclusivos, mas basicamente tem faixas exclusivas que não resolvem... O ônibus não tem prioridade nenhuma em ossas capitais, salvo em um ou outro corredor. Não tem sentido um ônibus perder minutos preciosos em pontos de ônibus porque os passageiros pagam na entrada, ficar preso num cruzamento porque o semáforo ficou vermelho, ou parar em comboios imensos por não haver faixas de ultrapassagem. É uma vergonha a falta de investimento em infraestrutura e corredores de ônibus. E o Brasil é o pioneiro. O BRT recebeu esse nome, infelizmente uma sigla inglesa, mas foi criado em Curitiba, introduzido nos anos 1960 e 1970. Participamos da implantação do BRT Transmilenio, em Bogotá, na Colômbia, e de outros mundo afora, enquanto por aqui só estamos engatinhando. O que vemos são promessas e mais promessas, mas não há investimentos fortes.

 

interna seesp 4O que faz o transporte ser tão bom em outros países?
Olha, primeiro uma política pública de continuidade. O Brasil carece dessa continuidade de governo: o Estado faz um plano de 30, 40 anos, e os governos têm de cumprir aquelas políticas. Aqui é o contrário, cada governo inventa a sua moda. Na Copa do Mundo de 2014, vimos linhas de VLT, de monotrilhos, sendo criadas em função do megaevento. Há casos como a linha 17 em São Paulo, criada para a abertura no estádio Morumbi, e o VLT de Cuiabá sofrendo as mesmas agruras. Faz-se um plano atabalhoado, e tudo termina em um prejuízo imenso. Então, a descontinuidade e as obras paralisadas são um grande mal que sofremos aqui.


Como melhorar e ampliar as fontes de financiamento no Brasil?

Essa discussão, por incrível que pareça, ainda permanece no mundo todo. A questão da receita fornecida pela tarifa e da receita vinda do governo. Porque o governo subsidiar o transporte não é bondade, é investimento. Quanto mais as pessoas usam o transporte coletivo, menos engarrafamentos, menos poluição, menos acidentes, e mais qualidade de vida. O transporte deve ter a receita própria, por meio da tarifa, mais o subsídio. O mundo inteiro já se conscientizou disso, ninguém discute mais. O que o mundo ainda discute é como acelerar o investimento, formar o financiamento para esse investimento. Para isso, muito se fala no valor da terra: quando surge uma linha de metrô ou BRT, há uma valorização do entorno dessas regiões. Parte dessa valorização tem de ser captada para investir mais no setor do transporte. É uma discussão eterna. Outras formas que estão sendo buscadas são integrações cada vez maiores de nossas estações de metrô, que a partir daí tornam-se pontos importantes inseridos na malha urbana. Uma estação não pode ser só uma estação, tem que ter comércio, lazer, como se fosse um shopping em cada estação. Isso traz receitas extraordinárias, além daquelas vindas de comunicação e propaganda nos veículos. Tudo isso vem sendo buscado. Infelizmente o Brasil é muito lento, a legislação é muito rígida. Ao desapropriar uma área para uma estação de BRT, você só pode dar essa finalidade, não pode aproveitar o espaço que sobra e construir um shopping ao lado. Essa é uma luta constante. Temos de ser mais audaciosos. Os empreendedores precisam vir com mais força e ênfase para empurrar nossos legisladores e governantes. Uma das coisas fundamentais é deixar de acreditar só no governo, parar de pensar que ele vai resolver tudo. Seja porque temos péssimos governantes, seja porque a legislação é caduca e esclerosada, necessitamos unir forças econômicas, intelectuais, e tentar resolver independentemente do governo.


Qual a importância do transporte público?
No mundo, o transporte público é considerado importante não somente para a mobilidade urbana, mas para as cidades de um modo geral. Ele forma, modela e dá contornos para as cidades, trazendo desenvolvimento. Além disso, o transporte público é o ente mais importante para a questão da redução de emissão de gases, da poluição sonora, enfim, vai além da função de levar uma pessoa de um lugar a outro. Por outro lado, a mobilidade, que abrange todos os modais — desde a bicicleta até o trem suburbano —, tem uma cadeia produtiva enorme e, portanto, um grande impacto na economia. Investir em mobilidade é dar também um salto na economia do país. A mobilidade urbana está no centro das economias modernas. Em muitos países, é impensável deixar o transporte público de lado. O que acontece no Brasil é que qualquer projeto grande, estrutural, seja um BRT ou um metrô, leva mais de quatro anos para ser concluído, e isso é superior ao período de um governo. E há muitos governantes que querem governar inaugurando. Pensam em sua vida política e não na questão do Estado brasileiro. A população, as entidades, todos nós precisamos saber cobrar que haja continuidade. Que os projetos sejam de Estado, e não de governo. Cada Estado e o país devem ter seus projetos e todos os governantes têm de cumprir, independentemente do partido político.



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