Sindical

Assédio moral, a humilhação em tempos de globalização

Rita Casaro

 

Abusos de poder cometidos contra empregados são talvez tão antigos quanto o próprio trabalho. Nada mais comum que a figura do chefe mal-humorado, que desrespeita subordinados e faz exigências descabidas. A novidade, aponta a médica e fiscal do trabalho Cecília Zavariz, está no fato de empresas terem passado a adotar “políticas que são discriminadoras com técnicas de assédio moral”.

Tendo organizado o Núcleo de Promoção da Igualdade de Oportunidades e de Combate à Discriminação da DRT (Delegacia Regional do Trabalho) de São Paulo, que coordenou até 2003, Zavariz teve oportunidade de acompanhar inúmeros casos de assédio moral, alguns sutis, de difícil demonstração; outros explícitos, como o caso denunciado pelo Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias Paulistas em relação à Ferroban (leia mais no quadro Terror no trabalho).

Em entrevista ao Jornal do Engenheiro, a médica falou sobre os males desse abuso, que se torna mais sofisticado no capitalismo contemporâneo e cujos efeitos extrapolam o ambiente de trabalho.

 

O parecer elaborado pela senhora sobre o assédio moral sofrido pelos empregados da Ferroban demonstra uma situação inimaginável. Como foi o caso?

Nós recebemos uma denúncia do sindicato, pedindo a fiscalização, e verificamos que na verdade tratava-se de assédio moral. Inicialmente, convocamos uma mesa-redonda para propor um acordo, mas a empresa não aceitou, já que a exigência era que pagasse a indenização devida àqueles que desejava demitir. A maioria sofreu um tratamento discriminatório deslavado. Esse tratamento gera muito sofrimento, a pessoa individualmente se sente menosprezada e por mais que, inicialmente, se ache competente, começa a questionar o próprio valor. Eles fizeram várias tentativas de se reabilitar perante a empresa e mostrar que poderiam ser úteis, mas era uma atitude proposital da companhia para forçar o desligamento voluntário.

 

Mas nem sempre o assédio moral é tão explícito...

Não, pode ser bem mais sutil e, às vezes, o indivíduo tem até dificuldade para demonstrar o que está acontecendo. É uma política de desestabilização emocional do empregado, que torna difícil manter o emprego. Os demais colegas muitas vezes dão razão ao empregador. Quando estava no núcleo, atendemos pessoas que queriam se suicidar devido ao que viviam no trabalho. Por isso, o atendimento não pode se limitar a receber a denúncia. É preciso dar o melhor encaminhamento possível e tentar achar uma solução para o caso.

 

No Brasil, há leis específicas sobre assédio moral desde 2000. O problema é novo?

Discriminação no trabalho sempre houve, mas, nos últimos anos, as empresas adotaram políticas que são discriminadoras com técnicas de assédio moral. O trabalhador menos esclarecido sempre foi humilhado com medidas como não permitir ir ao banheiro ou expor aqueles cuja produção é considerada baixa, entre inúmeras outras situações. Mas essa humilhação na escala mais graduada aumentou com a globalização. A política do toyotismo é extrair o máximo do trabalhador, do ponto de vista físico e do conhecimento. Essa estratégia de valorização individual em detrimento do coletivo gera a desarticulação entre os trabalhadores, que não se organizam. Ficam disputando espaço, poder e, no limite, o próprio emprego. Daí, a política de desemprego, muito bem arquitetada. Por exemplo, se há 20 funcionários, demitem-se dez e obrigam-se os restantes a fazer o serviço todo. Quem fica dá graças a Deus por ter mantido o emprego e trabalhar o dobro. Quando o empregado está em casa, ao invés de se dedicar à família e ao lazer, fica pensando na idéia que vai sugerir para se destacar na empresa. É uma política bem pensada por parte de quem quer lucrar a qualquer custo.

 

Essa competição exacerbada e o individualismo ficam restritos ao trabalho?

Não, porque com isso se está formando uma sociedade doente, na qual uns não confiam nos outros. Os problemas extrapolam para o conjunto da sociedade, as pessoas vão se isolando. Você leva isso para casa, para o convívio com os amigos. A sensação vai se apoderando da pessoa sem que ela perceba e é desestruturante. Há repercussões até para o ambiente, porque estamos preocupados com o aqui e agora e conosco mesmos. Se a tônica é o individualismo, como eu vou me preocupar com o planeta? Se não ligo para o colega que está ao meu lado, como vou me importar com as próximas gerações?

 
Terror no trabalho

Em fevereiro de 2002, determinada a dispensar mais de mil funcionários – além dos que já haviam sido cortados desde 1999, quando houve a privatização da antiga Fepasa –, a Ferroban impôs a esse contingente licença remunerada e impediu seu acesso às dependências da companhia. O objetivo da empresa, conforme o parecer técnico elaborado pela fiscal do trabalho Cecília Zavariz, era convencer esses empregados a aceitarem a demissão sem receber o valor integral da indenização prevista na cláusula 4.49, presente em seus contratos de trabalho, que poderia chegar a 50 salários. Sem pleno sucesso, a partir de maio, passou a comunicar o desligamento sem a quitação das verbas rescisórias devidas. Por decisão da Procuradoria do Trabalho, a Ferroban foi obrigada a anular tais demissões até que concordasse em cumprir a obrigação contratual.

Na longa queda-de-braço para forçar os empregados a saírem voluntariamente, a companhia fez com que esses experimentassem o legítimo pão que o diabo amassou. Sem função ou atividades na empresa, que se transferiu para novas instalações, esses permaneceram por vários dias na sede antiga, cujo estado de conservação era precário. Sem móveis, utilizavam cestas de lixo para se sentar e não dispunham de água para beber ou papel higiênico nos banheiros.

Outra medida foi a transferência coercitiva de uma cidade a outra. Um grupo de cerca de 60 pessoas alocadas na Estação Ferroviária de Campinas foi confinado numa sala apelidada de “aquário”, já que ficavam, sem atividade, sob observação de quem passava através de uma janela de vidro. Situados ao lado do depósito de lixo da empresa, foram apelidados de “peixes mortos” ou “podres”. Outro grupo ficou lotado em um armazém isolado, que passou a ser chamado de “pavilhão 9”, em referência à famosa área em que houve um massacre de detentos no Complexo do Carandiru.

 
Identifique o abuso e reaja

O site “Assédio moral no trabalho. Chega de humilhação!” (www.assediomoral.org), criado, entre outros profissionais, pela médica Margarida Barreto, autora da tese sobre o assunto “Uma jornada de humilhações”, traz informações sobre o problema e orientação de como identificar o abuso e lutar contra ele.

Em São Paulo, as denúncias podem ser feitas ao Núcleo de Promoção da Igualdade de Oportunidades e de Combate à Discriminação da DRT, que fica na Rua Martins Fontes, 109, 9º andar, na Capital. O telefone é (11) 3150-8054 ou 3150-8069.

 

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