Opinião

Cicatrizes urbanas

Adilson Luiz Gonçalves *

Como se planeja uma cidade? Embora existam normas atualizadas e séculos de evolução do urbanismo, às vezes dá a impressão que tudo muda a cada quatro anos. As cidades são dinâmicas? Sim, sem dúvida, aliás, como todo organismo vivo que, inegavelmente, elas são.

Organismo vivo? Sim, afinal os lotes são como células; os edifícios públicos, comerciais e industriais e as áreas de lazer, como órgãos vitais; as vias públicas, como vasos sanguíneos, por onde circulam pedestres, motoristas ou passageiros e seus veículos, que levam oxigênio a todas as partes do “corpo”, e também precisam de mecanismos de depuração para controlar ou eliminar os riscos de intoxicação. Uma analogia completa, inclusive quanto aos riscos de malformação (crescimento desordenado) e falta de profilaxia (serviços deficientes).

Uma cidade bem planejada e cuidada terá longevidade, com qualidade de vida. Se, entretanto, não receber cuidados adequados, estará à mercê de doenças, que podem virar crônicas, causar necroses no “tecido urbano” ou acidentes vasculares (problemas viários), além de outras anomalias, que podem levar à debilidade, ao caos ou à decadência.

Como evitar que isso aconteça? Nos anos 1960, várias cidades brasileiras implantaram seus planos diretores físicos, cujo objetivo era disciplinar o uso do espaço urbano. No princípio, eram todos muito semelhantes, “pasteurizados”, mas tiveram um importante papel no enfrentamento dos problemas gerados pelo crescimento acelerado dos grandes centros. Junto com eles surgiram as empresas de planejamento estatais, que passaram a centralizar os dados e propor soluções planejadas e coordenadas a médio e longo prazos. O que era sinônimo de racionalidade esbarrou na resistência de alguns governantes, eleitos ou não, que passaram a ver nesses órgãos empecilhos técnicos à realização de seus projetos pessoais.

Como conseqüência, a maioria dessas empresas transformou-se em prestadora de serviços e ostenta, hoje, endividamentos elevados, ausência de foco e administrações leigas. As atividades que centralizavam e coordenavam foram pulverizadas em diversos setores, gerando uma concorrência nem sempre positiva. O passar dos anos exigiu a atualização dos planos diretores, o que é natural. Porém, a necessidade de mudanças trouxe, a reboque, uma flexibilidade que os tornou efêmeros, quase uma “metamorfose ambulante”.

A engenharia genética tem provado que experimentos mal planejados podem até apresentar resultados satisfatórios por algum tempo, mas tendem a gerar mutações descontroladas, que podem degenerar em aberrações.  Analogamente, intervenções desse tipo podem transformar o espaço urbano num brinquedo ou laboratório alquímico e empírico, onde o principal objetivo é deixar “marcas”. Ocorre que se essas  vão atacar mais os efeitos que as causas, em vez de resolverem problemas, poderão criar novos, piores. Exigirão manutenção constante ou, quando a rejeição do tecido urbano é irreversível, terão que ser extirpadas, ao preço do erário e do desgaste.

O advento do Estatuto da Cidade e a necessidade de Estudos de Impacto de Vizinhança são tão importantes para o equilíbrio urbano quanto os EIA-Rima são para a preservação ambiental. A tendência é que minimizem intervenções intempestivas, retomando e valorizando o trabalho integrado dos especialistas em urbanismo, em perfeita sintonia com as aspirações da sociedade. Com isso, as intervenções serão celebradas por sua pertinência, utilidade e eficácia perene, beneficiando progressivamente as cidades e regiões, independentemente de vaidades pessoais e ideologias políticas.

Convém lembrar que os governos passam, mas as cidades ficam.

 

* Engenheiro e professor universitário

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