IMPEDIMENTO LEGAL PODE SALVAR SÃO PAULO DA PRIVATIZAÇÃO

A população dos 366 municípios paulistas atendidos pela Sabesp tem uma chance de não ver o serviço de saneamento público privatizado em suas cidades. Apesar da febre desestatizante que ainda toma conta do País — mesmo após casos malogrados como os da telefonia e energia elétrica — dificuldades legais podem impedir que o abastecimento de água tratada e a coleta de esgoto deixem de ser feitos pelo Estado na Capital, Região Metropolitana e parte do Interior. "A Constituição do Estado de São Paulo prevê que saneamento básico é uma prerrogativa do Estado, portanto a Sabesp não é privatizável sem alterações na lei, o que é muito difícil de acontecer", afirmou o secretário de Recursos Hídricos, Saneamento e Obras, Antônio Carlos Mendes Thame. Para a coordenadora executiva da ONG Água e Vida Centro de Estudos de Saneamento Ambiental, Téia Magalhães, a questão vai mais além. "O saneamento é local, quem tem o poder concedente do serviço é o município, que portanto tem autonomia para decidir quem vai operá-lo." Isso significa que, ao vender a Sabesp, o governo estadual estaria negociando apenas o direito de executar um serviço, já que o patrimônio é do município, o que é amortizado por meio das tarifas. E, para isso, precisaria de anuência das cidades onde opera, o que é estabelecido pela Constituição Federal. "O grupo que comprar uma empresa estadual de saneamento deve contratar um batalhão de advogados, porque vai estar o tempo todo às voltas com questões jurídicas e vai perder", garantiu Téia.

A discussão em torno do poder concedente fica mais polêmica nas Regiões Metropolitanas, onde o serviço é feito de maneira integrada. "Há uma corrente que diz que o poder é do Estado e outra que garante que é compartilhado com os municípios", afirmou Thame. Para Téia, contudo, essa versão deve-se ainda a uma decisão do governo federal durante a ditadura militar, em 1974, que determinou a criação das empresas estaduais de saneamento que receberam a concessão para essas regiões por 25 anos. "Isso não faz dessas companhias donas do serviço e contratos de concessão, sejam com o Estado ou com a iniciativa privada, podem ser rescindidos a qualquer momento, desde que atendidas as normas legais", ressaltou.

É baseado nessa brecha que o prefeito da Capital, Celso Pitta, anunciou a concessão do serviço à iniciativa privada como uma das formas de abater dívidas com a União. Criticada pelos profissionais da Sabesp e pelo governo do Estado, a medida deve dar início a uma batalha jurídica. "A Prefeitura de São Paulo nunca exerceu atividades de saneamento, que há 100 anos são feitas pelo Estado, não tendo investido um centavo nisso. Isso será decidido nas barras dos tribunais e é muito difícil que alguém ganhe um direito que nunca exerceu", afirmou Thame.


Serviço público
A corrente de pensamento que vê graves riscos na privatização do saneamento tem dois argumentos claros para isso. Primeiro, as privatizações nas áreas de telefonia e energia elétrica, que até agora não trouxeram as melhorias prometidas, mas pelo contrário queda na qualidade do serviço e aumento de tarifas. O outro é o resultado da concessão à iniciativa privada em alguns municípios brasileiros e em outros países. "Em Paranaguá, para tornar o contrato mais atraente, não foi incluída nele a região periférica da cidade, que teria que ser operada pelo município. O resultado foi um surto de cólera, que se prolongou por dias sem que a empresa tomasse qualquer providência, simplesmente porque não estava no seu contrato. E só o fez após sentar e negociar essa ação emergencial", disse Téia. Exemplos de contratos mal-sucedidos não param de aparecer. "Em Limeira, houve aumento de tarifa e há polêmica sobre a legalidade do contrato. Ribeirão Preto fez uma concessão há seis anos para tratar esgoto e até hoje não começou", contou. Atravessando a fronteira, encontram-se os mesmos problemas, como em Tucumã, na Argentina, onde a periferia também ficou sem atendimento. No país, aliás, os efeitos nefastos da privatização foram além. "O setor foi desmontado, o curso de engenharia na área de saneamento não tem mais procura porque não há mercado. As empresas que estão lá contratam técnicos e compram produtos estrangeiros", atestou Téia.

Para evitar pesadelos como esses, segundo ela, a Água e Vida defende que o saneamento seja operado pelo setor público. "Isso significa tratar com eqüidade todos os segmentos sociais, mesmo aqueles que têm problemas em relação à remuneração do serviço prestado. Por se tratar de um serviço absolutamente essencial, porque diz respeito à sobrevivência e à saúde das pessoas e da sociedade, nós entendemos que tem uma característica especial e não pode ser entregue à iniciativa privada, que objetiva lucro. Não significa que não tenha operação superavitária, mas o lucro como algo apropriado pelo dono do capital, para nós, não tem sentido no saneamento."


Mercado promissor
A tese, contudo, bate de frente com dois fortes opositores: o firme propósito do governo federal de privatizar o setor e o interesse de grupos internacionais em ganhar muito dinheiro com ele. Segundo informações da Secretaria de Desenvolvimento Urbano, já estão em execução as concessões em Araruama, Saquarema, Silva Jardim, Búzios, Cabo Frio, São Pedro da Aldeia, Arraial do Cabo, Nova Friburgo, Campos dos Goitacazes, Niterói e Petrópolis (RJ), Limeira, Mairinque, Mineiros do Tietê, Pereiras e Tuiuti (SP) e Paranaguá (PR). Uma série de outras cidades e regiões metropolitanas estão em fase de elaboração de editais, preparação para a entrega à iniciativa privada ou sob permissão precária de serviços. Há ainda aquelas em que foi negociado parte do capital acionário de empresas estaduais, como a Sanepar, Saneatins, Embasa, Compesa e Cesan.

Para viabilizar as concessões nas regiões metropolitanas, o governo federal está tentando transferir o poder do Município para o Estado, o que está em discussão no Congresso Nacional. "Mas isso contraria toda a base jurídica do País desde os tempos da primeira Constituição e dificilmente vai acontecer. Se ocorrer, significa que estamos muito mal, porque é um processo de centralização completamente estapafúrdio", criticou Téia. O esforço do governo vai ao encontro dos interesses do capital estrangeiro, que considera mais vantajoso operar um grande bloco. Além de não ter que negociar cada contrato com os municípios e ficar à mercê dos interesses dos prefeitos que se sucederem no poder local, as empresas podem abocanhar grandes filões de uma só vez. A Sabesp, por exemplo, encerrou o terceiro trimestre registrando lucro de R$ 137,2 milhões e receita líquida de R$ 867,4 milhões, superando os R$ 110,1 milhões e R$ 748,4, respectivamente, de 1998. Isso mesmo tendo sido atingida pela desvalorização do real do início do ano, já que tem dívidas contratadas em dólar. Números como esses já aguçaram o interesse de grupos internacionais como Enron, Iberdrola, Thames Water, Eletricidade de Portugal, Vivendi e Lyonnaise des Eaux, de acordo com o jornal Gazeta Mercantil, de 21 de novembro último.

Vale notar que a mais poderosa entre elas, a Lyonnaise, juntamente com a Compagnie Générale des Eaux e o grupo Saint Gobain, viu-se envolvida em escândalos de corrupção que começaram com financiamento de campanhas eleitorais e terminaram com favorecimentos em concessões de serviços públicos. Segundo publicação da Água e Vida, o caso mais notório levou à prisão, em 1994, o ex-ministro das Comunicações e então prefeito de Grenoble, Alain Caringnon. O Brasil, onde a desestatização é feita com financiamento de dinheiro público e os compradores ainda são beneficiados pela devolução do ágio e crédito tributário (veja entrevista concedida pelo jornalista Aloysio Biondi sobre o assunto), talvez tenha que lidar com novos vícios no caso das privatizações do saneamento básico.


Água, um bem valioso
Paralelamente à privatização do saneamento básico, ganha destaque no País a idéia de que recursos hídricos são um bem público e econômico. De acordo com o assessor especial do Ministério do Meio Ambiente e ex-presidente da ABRH (Associação Brasileira de Recursos Hídricos), Jerson Kelman, embora o Brasil possua 13% do escoamento total dos rios do Planeta, "esses demonstram exaustão, materializada nas secas do Nordeste e na absurda poluição hídrica próxima aos centros urbanos". Para sanar essa situação, conceitos como a necessidade de recuperação e preservação e da cobrança do usuário direto que capta ou lança efluentes na água foram assimilados pela Lei 9.337/97, a chamada Lei das Águas, que criou o SNGRH (Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos). O próximo passo é o estabelecimento da ANA (Agência Nacional de Águas), autarquia especial com autonomia administrativa e financeira, que deve coordenar o SNGRH e zelar pelos rios da União.

No âmbito estadual, está na Assembléia Legislativa o Projeto de Lei 20/98, que institui a cobrança pelo uso da água. Segundo o secretário de Recursos Hídricos, Saneamento e Obras, Antônio Carlos Mendes Thame, a idéia já está consagrada: "A água é de todos, não pertence ao dono da fazenda por onde passa um rio. Portanto, quem usa deve pagar por isso." De acordo com ele, se for cobrado R$ 0,01 por mil litros consumidos, ao final de um ano o Estado terá arrecadado R$ 380 milhões. "Isso, somado ao que seria taxado sobre o lançamento de efluentes, geraria recursos vultosos a serem aplicados na recuperação dos nossos rios", afirmou.

Embora seja consenso entre os partidos, o projeto está parado desde o início de 1998 e recebeu 102 emendas, além de dois substitutivos. A principal polêmica gira em torno de quem deve cobrar e administrar os recursos, um órgão centralizado como o DAEE (Departamento de Águas e Energia Elétrica) ou os Comitês de Bacias.

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