USUÁRIOS PAGAM A CONTA PELO "CHEQUE EM BRANCO"

PASSADO AO MERCADO PELA ANATEL
 

A privatização do Sistema Telebrás deveria ser um passaporte para um futuro com linhas para todos, celulares que funcionariam e preços que baixariam significativamente. Um ano após a venda das operadoras, o usuário se vê numa situação bem diferente da que lhe foi prometida. A mudança na discagem de ligações interurbanas, propalada como mais uma benção do livre mercado, trouxe, no fim das contas, irritação e prejuízo para muita gente. No fechamento desta edição, anunciava-se para o início de agosto outro susto: a alteração para as chamadas entre cidades com o mesmo código DDD. Segundo Márcio Wohlers de Almeida, engenheiro especializado em Economia das Telecomunicações, membro do Conselho Curador do CPqD (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento), coordenador-geral do Celaet (Centro Latino-Americano de Economia das Telecomunicações) e Personalidade das Telecomunicações 1998, tais situações não deveriam surpreender, já que estavam previstas no modelo de privatização adotado no País.

 

Jornal do Engenheiro: O que explica tantos problemas para o novo sistema de ligações interurbanas?

Márcio Wohlers de Almeida: O modelo de concorrência privada colocado em prática pela Anatel é muito complexo, porque as empresas têm que cooperar tecnicamente, concorrer entre si e ainda manter a relação cliente-fornecedor. Passar de um monopólio público para um sistema de concorrência com essas características é muito difícil. Outro aspecto é que o fato de o sistema ser muito instável, tendo em vista que o consumidor seleciona a operadora a cada ligação, o que induziu a um gasto excessivo em propaganda. Isso é um contra-senso, porque pode ser que as empresas acabem gastando em propaganda um dinheiro que poderia ser investido na construção da rede. Só é bom para a grande mídia porque gera distribuição de renda a favor das atividades de marketing.

JE: Que avaliação você faz do desempenho da Anatel?

Wohlers: Nesse contexto do DDD, a Anatel acreditou que o sistema estava bem. Foi uma santa ingenuidade, confiou-se mais uma vez no "jeitinho brasileiro". Houve uma subestimação do problema e a agência não fez uma campanha educativa, de conscientização, o que demandaria mais verba e autonomia. Além disso, está centralizada em Brasília, não tendo contato maior com os poderes públicos locais. De modo geral, ela ainda não achou o seu ponto de atuação correto, isto é, se deve se antecipar às falhas do mercado ou agir após o problema. Em situações como essas, de mudanças mais radicais, deveria adotar uma atitude mais enérgica. Esperar que uma das partes desrespeite o contrato para multar pode não ser o melhor caminho, até porque corre-se o risco de enviar um sinal fraco de aprendizado para as empresas, que podem preferir simplesmente pagar e continuar errando, dependendo de quanto isso signifique.

JE: O novo sistema trará realmente vantagens financeiras para os usuários?

Wohlers: A longa distância é o segmento que tem menor investimento relativo: portanto, tende a ter a tarifa reduzida. Mesmo em países que mantiveram o monopólio, isso aconteceu porque o governo impunha e a tecnologia permitia. O índice de produtividade que deve ser revertido em favor dos consumidores nesse serviço é de 2% em 1999, 2% em 2000, 4% em 2001 e 4% em 2002, em média. O modelo foi feito para diminuir o preço do interurbano e, mesmo sem a concorrência, cairia, porque já há redes corporativas alternativas que roubam mercado da pública.

JE: Por que a privatização acabou gerando tantos transtornos?

Wohlers: Tudo isso é conseqüência do modelo de privatização e do próprio encaminhamento da Lei Geral de Telecomunicações. Quando da sua discussão, em 1997, o Legislativo passou um cheque em branco para o Executivo, que repassou para a Anatel e essa para o mercado, que não funcionou. Existe um processo de erro e acerto que está pesando sobre o usuário. A atual situação da telefonia e o espanto da população decorrem do fato de a mídia e a opinião pública terem comprado a tese de que o privado era bom e o estatal ruim. As coisas aconteceram conforme o previsto, o modelo de privatização adotado era esse; eu não sei porque as pessoas se escandalizam agora com a situação.

JE: A sociedade está mais desinformada hoje sobre o que se passa com a telefonia?

Wohlers: Quando há a privatização, estabelece-se o jogo de interesses entre acionista, consumidores e órgão regulador: o governo quis colocar um ágio e melhorar a receita pública, os acionistas, um retorno de dividendos e o usuário, melhores serviços. Não é possível que todos ganhem, e é evidente que o consumidor está pagando a conta. É preciso que a sociedade invista em informações, que agora são estratégicas, para que tenha chance nessa disputa. Por exemplo, na Inglaterra, quando se vendeu a British Telecom, em 1984, por três anos a empresa não deu informações completas sobre o seu número de linhas, sob a alegação de que isso provocaria manobras especulativas contra as suas ações. Imagine o que pode ocorrer aqui!

 

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