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21/05/2018

Padrões de qualidade do ar protetivos – o diabo e a cruz

Estávamos nos meados dos anos 1970, em meio a uma aguda poluição do ar, fatalidades em Cubatão e uma atmosfera ácida na área metropolitana de São Paulo. Mas também foram tempos memoráveis, de acertadas decisões políticas. Agentes ambientais extraordinariamente motivados, com carta branca das instâncias superiores de governo, carregavam as mais avançadas bandeiras para conter, com todas as ferramentas tecnológicas disponíveis, a intensa carga poluidora da região. A pioneira agência ambiental paulista tornou-se então a referência do controle da poluição do ar na América Latina. Era chegada a hora de imprimir um padrão de desenvolvimento econômico mais limpo e sustentável. Indústrias excessivamente poluidoras e aquelas resistentes aos novos requisitos de controle foram então fechadas. Era a mão pesada do Estado em favor da comunidade.

 

 

Em 1986, seguindo o modelo dos países desenvolvidos, foi instituído o Programa Nacional de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), equacionando a redução progressiva das emissões dos veículos novos, com padrões máximos de emissão e tecnologias inovadoras. Em seguida, foi publicada pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) a Resolução 03 de 1990, que criou os Padrões Nacionais de Qualidade do Ar (PQArs), que vigoram até hoje – embora não guardem mais nenhuma correlação com as referências científicas atuais de proteção à saúde pública.

Os esforços não foram em vão. Observou-se ao longo desses anos alguns importantes avanços na qualidade do ar, entretanto, alguns poluentes como o material particulado fino – MP e o ozônio troposférico (ao nível da respiração) – O3 seguiram sua rotina de violação dos PQArs – ainda que amplamente lenientes. O modelo paulista de desenvolvimento e gestão ambiental, e os problemas ambientais remanescentes, replicaram-se em outras grandes metrópoles brasileiras nas últimas décadas.

Como regra geral, a poluição industrial encontra-se hoje, de fato, razoavelmente controlada; porém, os veículos, por mais avançadas que sejam as tecnologias, perdem, ao longo do uso, as características ambientais limpas do modelo novo e regulado; tornam-se tão sujos quanto as carroças produzidas antes do Proconve. As almejadas baixas emissões só ocorrem nas ruas quando os veículos se encontram em bom estado de manutenção e circulando em tráfego fluido, algo hoje distante de nossa realidade urbana.

Mais de 30 anos se passaram após a publicação do Proconve; muitas medidas simples, baratas e custo-efetivas que poderiam, nesse ínterim, ter reduzido drasticamente as emissões dos transportes nas ruas – para eliminar de vez as violações rotineiras do MP e do O3 – foram abandonadas nas páginas amareladas dos abundantes planos de despoluição veicular e transporte público limpo. Além disso, novas ideias e tecnologias de mitigação prosperam com notável vigor há alguns anos em outros países e incluem agora – era do combate decisivo às mudanças climáticas – o incentivo agressivo à penetração dos veículos elétricos e a limitação das emissões de gases do efeito estufa (dióxido de carbono – CO2) de veículos leves e pesados, o que promoverá uma gradual eficientização e downsizing da frota motorizada; entretanto, os fóruns regulatórios no Brasil encontram-se há duas décadas amortecidos.

Um enganoso discurso derrotista da imobilidade justificada pela crise econômica tornou-se uma ladainha entre os passivos gestores públicos e setor produtivo. Trata-se essencialmente, na verdade, de questões eleitorais – por exemplo no caso da ausência patológica da inspeção veicular dos estados, há 21 anos obrigatória por lei; mas também da musculosa resistência do setor produtivo, permanentemente exercida e facilitada nos gabinetes e nos sensíveis fóruns de regulamentação. Oportunidades que dependem de agilidade decisória são perdidas "em bateladas". Medidas simples, que poderiam ser implementadas num piscar de olhos em condições normais de pressão e temperatura, tornaram-se partos de montanhas no Planalto Central. São dificuldades quase intransponíveis para o atendimento ao interesse público – e assumiram um frustrante caráter de regra institucional tácita.

O presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam) cunhou a expressão "dumping ambiental", fenômeno cultural corporativo que amortece a força original transformadora das instituições ambientais governamentais brasileiras, desviando-as ou inibindo sua missão. O dumping está nas intermináveis discussões que se arrastam no Conama e fora dele sobre a implementação definitiva da inspeção veicular; aumento da curtíssima durabilidade dos catalisadores de autos e motos; controle de emissões evaporativas em postos de abastecimento; avanço para a tecnologia Euro 6 para veículos a diesel (Proconve P8); adaptação de filtros em veículos a diesel existentes mais antigos (retrofit); criação de uma política agressiva de incentivos para os veículos elétricos e a gás natural; equacionamento da elevadíssima evasão do licenciamento anual; implementação de rede de corredores de transporte público de baixo potencial poluidor; adoção de programas de gestão de demanda de deslocamentos motorizados individuais; e outras diversas medidas cruciais para a redução das emissões veiculares.

Diante disso, não surpreende a surreal discussão sobre a atualização dos PQArs, que se arrasta há mais de cinco anos no Conama. Afinal, PQArs bem ajustados, com prazo peremptório – como tem que ser – seriam uma pedra no sapato dos gestores do subdesenvolvimento; fogem do prazo como o diabo da cruz e seguem firmes adiando sistematicamente, há mais de 20 anos, a adoção dessas medidas simples e essenciais de controle de emissões atmosféricas. Daí a importância da participação ativa nessas discussões do Ministério Público, das ONGs ambientais e de saúde pública e da banda viva dos políticos, que podem, quem sabe, dar um jeito de pôr ordem na casa e acelerar o resgate dos avanços perdidos.

 

Foto: Agência Brasil 

 

 

 

 

 

 

  

 

Olimpio Alvares é engenheiro mecânico pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, consultor especialista em controle de emissões e transporte sustentável, ex-gerente da área de controle de emissões veiculares da Cetesb, onde atuou por 26 anos

 

 

 

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