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20/04/2017

Paranapiacaba: vila operária em tempo de escravidão

Construída para moradia dos funcionários da ferrovia São Paulo Railway, que ligava a região cafeicultora de Jundiaí ao porto de Santos, principal ponto de escoamento do produto, a Vila de Paranapiacaba foi, talvez, o primeiro núcleo de povoamento operário do Brasil. Encravada na Serra do Mar, a menos de 50 quilômetros da capital paulista, chegou a abrigar 5 mil trabalhadores assalariados no tempo de construção da ferrovia e um número menor no período posterior. A linha férrea foi inaugurada em 1867.

O livro "A arqueologia da São Paulo Oitocentista: Paranapiacaba", da arqueóloga Cláudia Regina Plens, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), descreve a estrutura da vila e a vida cotidiana de seus habitantes, bem como o papel da rede ferroviária que lhe deu origem na expansão do sistema capitalista no Brasil.

Escrito a partir de dados levantados em uma pesquisa de campo apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o livro também contou com o suporte da Fundação para publicação.

Plens, que tem concentrado seu esforço de pesquisa no campo da arqueologia brasileira [para mais informações acesse http://agencia.fapesp.br/23383/], recorreu neste livro às ideias do filósofo francês Michel Foucault (1926 – 1984) para explicar como os ingleses, à testa da construção da ferrovia, implantaram em Paranapiacaba um modelo ordenado e sistemático de sociedade, em consonância com o paradigma higienista do século XIX.

“No meio da vila e no alto de um morro, ficava a casa do engenheiro-chefe, que chamamos de ‘Castelinho’ atualmente. De lá, ele podia ver tudo o que se passava e vigiar os trabalhadores. Era o sistema panóptico, descrito por Foucault em seu célebre livro "Surveiller et Punir: naissance de la prison" [Vigiar e Punir: nascimento da prisão], de 1975. Havia regras estritas não apenas em relação ao trabalho, mas também em relação ao lazer. Os operários podiam transitar pelas ruas apenas até determinada hora. E até o clube da vila, chamado de Lírio da Serra, ficava em um plano inferior, sob as vistas do engenheiro-chefe”, disse Plens.

Esse ordenamento racional e rígido tinha por objetivo extrair dos operários a máxima produtividade e manter a vila e a ferrovia funcionando com a regularidade dos ponteiros de um relógio. Inserida em uma sociedade ainda escravista, Paranapiacaba foi um enclave capitalista modelo, construído e administrado pelos ingleses. “A vila era toda pré-fabricada. As casas e outras edificações vieram da Inglaterra e foram montadas aqui. Consideradas patrimônio histórico, essas construções estão atualmente tombadas pelo Condephaat [Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico]”, informou a pesquisadora.

Assim como as ruas, que na área da Vila Nova de Paranapiacaba eram todas alinhadas formando ângulos retos, também a estratificação social obedecia a um rigoroso ordenamento. Na base da pirâmide, ficavam os operários de diferentes origens – principalmente espanhóis e italianos. Um degrau acima, os comerciantes portugueses. No alto, os engenheiros e médicos ingleses. E, acima de todos, o engenheiro-chefe. “Interessados na extinção do sistema escravista no Brasil, os ingleses ajudavam escravos fugitivos a escapar para o Quilombo de Jabaquara, localizado em Santos. Mas não empregavam negros na ferrovia ou nos serviços da vila. A população atual de Paranapiacaba não descende desses primeiros habitantes”, afirmou Plens.

Paranapiacaba estava dividida em três setores: a Vila Velha, de arruamento irregular, onde moravam os primeiros trabalhadores, os solteiros em casas de cômodos, os casados em casas privativas; a Vila Nova, de ruas quadriculadas, habitada pelos ingleses e engenheiros e médicos; e o setor comercial, situado do outro lado do morro, ocupado pelos portugueses. As casas eram propriedade da São Paulo Railway e, atualmente, pertencem à Prefeitura de Santo André. Um dos objetivos iniciais da pesquisadora foi estabelecer, a partir dos vestígios arqueológicos, os padrões de consumo nessas três áreas.

Escavando os quintais das casas de Paranapiacaba, Plens descobriu que estes eram recobertos por uma camada de piche. Tal procedimento, sem paralelos nas cidades brasileiras da época, era adotado pelos ingleses para manter o saneamento da vila. “Os rejeitos, em outras cidades lançados nos quintais ou nas ruas, eram recolhidos semanalmente em Paranapiacaba e depositados em lixões”, revelou a pesquisadora.

Na lixeira do antigo Hotel dos Engenheiros, que não existe mais, e na casa do engenheiro-chefe, Plens encontrou fragmentos de vidro e de porcelana – variados no caso do hotel e bastante padronizados na casa do engenheiro-chefe. “A inexistência de porcelana na casa dos trabalhadores indica que seu padrão de consumo era provavelmente bem mais baixo, com o uso de cerâmicas rústicas, cujos eventuais vestígios não resistiram à ação do tempo, ou de materiais mais resistentes, como o ferro esmaltado [ágata], que esses habitantes devem ter levado consigo quanto deixaram o local”, conjecturou Plens.

Em Paranapiacaba, os assalariados desfrutaram de benefícios que não receberiam em outros lugares, como atendimento hospitalar e escola para os filhos. Mas, ao mesmo tempo, ficaram confinados ao lugar, com sua mobilidade tolhida. Isso atendia à lógica do capitalismo no tempo em que era do interesse da empresa fixar o trabalhador – o que já não corresponde à situação atual.

A palavra “paranapiacaba” significa, em tupi, “lugar de onde se vê o mar”. E, de fato, nos raros dias em que o céu está livre de neblina, é possível, do alto do morro, enxergar o litoral de Cubatão. “Mas, embora existam trilhas indígenas na região, até onde se sabe não havia nela nenhum povoamento pré-histórico. A vila nasceu em função da construção da ferrovia, inteiramente financiada pelo Barão, mais tarde Visconde, de Mauá, Irineu Evangelista de Sousa (1813 – 1889), que emprestou dinheiro para os ingleses e jamais foi ressarcido”, sublinhou a pesquisadora.

Empreendedor e abolicionista, considerado o primeiro grande capitalista brasileiro, Mauá possuía, na época da inauguração da ferrovia, um ativo estimado em 115 mil contos de réis, enquanto o orçamento do Império, no mesmo ano, contabilizava 97 mil contos de réis. Com suas iniciativas empresariais minadas pela política conservadora e logrado no empreendimento da São Paulo Railway, foi à falência, sendo obrigado a vender a maioria de suas empresas a capitalistas estrangeiros e a dispor de seus bens pessoais para liquidar as dívidas.

A arqueologia da São Paulo Oitocentista: Paranapiacaba
Autora: Cláudia Regina Plens
Editora: Annablume
Ano: 2016
Páginas: 138
Preço: R$ 51,83
Para mais informações acesse: www.annablume.com.br/loja/product_info.php?products_id=2108&osCsid=ih6nkjj8p3h

 

Publicado por Rosângela Ribeiro Gil
Comunicação SEESP
Texto de José Tadeu Arantes | Agência Fapesp

 

 

 

 

 

 

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Construída para moradia dos funcionários da ferrovia São Paulo Railway, que ligava a região cafeicultora de Jundiaí ao porto de Santos, principal ponto de escoamento do produto, a Vila de Paranapiacaba foi, talvez, o primeiro núcleo de povoamento operário do Brasil. Encravada na Serra do Mar, a menos de 50 quilômetros da capital paulista, chegou a abrigar 5 mil trabalhadores assalariados no tempo de construção da ferrovia e um número menor no período posterior. A linha férrea foi inaugurada em 1867.

O livro A arqueologia da São Paulo Oitocentista: Paranapiacaba, da arqueóloga Cláudia Regina Plens, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), descreve a estrutura da vila e a vida cotidiana de seus habitantes, bem como o papel da rede ferroviária que lhe deu origem na expansão do sistema capitalista no Brasil.

Escrito a partir de dados levantados em uma pesquisa de campo apoiada pela FAPESP, o livro também contou com o suporte da Fundação para publicação.

Plens, que tem concentrado seu esforço de pesquisa no campo da arqueologia brasileira [para mais informações acesse http://agencia.fapesp.br/23383/], recorreu neste livro às ideias do filósofo francês Michel Foucault (1926 – 1984) para explicar como os ingleses, à testa da construção da ferrovia, implantaram em Paranapiacaba um modelo ordenado e sistemático de sociedade, em consonância com o paradigma higienista do século XIX.

“No meio da vila e no alto de um morro, ficava a casa do engenheiro-chefe, que chamamos de ‘Castelinho’ atualmente. De lá, ele podia ver tudo o que se passava e vigiar os trabalhadores. Era o sistema panóptico, descrito por Foucault em seu célebre livro Surveiller et Punir: naissance de la prison [Vigiar e Punir: nascimento da prisão], de 1975. Havia regras estritas não apenas em relação ao trabalho, mas também em relação ao lazer. Os operários podiam transitar pelas ruas apenas até determinada hora. E até o clube da vila, chamado de Lírio da Serra, ficava em um plano inferior, sob as vistas do engenheiro-chefe”, disse Plens à Agência FAPESP.

Esse ordenamento racional e rígido tinha por objetivo extrair dos operários a máxima produtividade e manter a vila e a ferrovia funcionando com a regularidade dos ponteiros de um relógio. Inserida em uma sociedade ainda escravista, Paranapiacaba foi um enclave capitalista modelo, construído e administrado pelos ingleses. “A vila era toda pré-fabricada. As casas e outras edificações vieram da Inglaterra e foram montadas aqui. Consideradas patrimônio histórico, essas construções estão atualmente tombadas pelo Condephaat [Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico]”, informou a pesquisadora.

Assim como as ruas, que na área da Vila Nova de Paranapiacaba eram todas alinhadas formando ângulos retos, também a estratificação social obedecia a um rigoroso ordenamento. Na base da pirâmide, ficavam os operários de diferentes origens – principalmente espanhóis e italianos. Um degrau acima, os comerciantes portugueses. No alto, os engenheiros e médicos ingleses. E, acima de todos, o engenheiro-chefe. “Interessados na extinção do sistema escravista no Brasil, os ingleses ajudavam escravos fugitivos a escapar para o Quilombo de Jabaquara, localizado em Santos. Mas não empregavam negros na ferrovia ou nos serviços da vila. A população atual de Paranapiacaba não descende desses primeiros habitantes”, afirmou Plens.

Paranapiacaba estava dividida em três setores: a Vila Velha, de arruamento irregular, onde moravam os primeiros trabalhadores, os solteiros em casas de cômodos, os casados em casas privativas; a Vila Nova, de ruas quadriculadas, habitada pelos ingleses e engenheiros e médicos; e o setor comercial, situado do outro lado do morro, ocupado pelos portugueses. As casas eram propriedade da São Paulo Railway e, atualmente, pertencem à Prefeitura de Santo André. Um dos objetivos iniciais da pesquisadora foi estabelecer, a partir dos vestígios arqueológicos, os padrões de consumo nessas três áreas.

Escavando os quintais das casas de Paranapiacaba, Plens descobriu que estes eram recobertos por uma camada de piche. Tal procedimento, sem paralelos nas cidades brasileiras da época, era adotado pelos ingleses para manter o saneamento da vila. “Os rejeitos, em outras cidades lançados nos quintais ou nas ruas, eram recolhidos semanalmente em Paranapiacaba e depositados em lixões”, revelou a pesquisadora.

Na lixeira do antigo Hotel dos Engenheiros, que não existe mais, e na casa do engenheiro-chefe, Plens encontrou fragmentos de vidro e de porcelana – variados no caso do hotel e bastante padronizados na casa do engenheiro-chefe. “A inexistência de porcelana na casa dos trabalhadores indica que seu padrão de consumo era provavelmente bem mais baixo, com o uso de cerâmicas rústicas, cujos eventuais vestígios não resistiram à ação do tempo, ou de materiais mais resistentes, como o ferro esmaltado [ágata], que esses habitantes devem ter levado consigo quanto deixaram o local”, conjecturou Plens.

Em Paranapiacaba, os assalariados desfrutaram de benefícios que não receberiam em outros lugares, como atendimento hospitalar e escola para os filhos. Mas, ao mesmo tempo, ficaram confinados ao lugar, com sua mobilidade tolhida. Isso atendia à lógica do capitalismo no tempo em que era do interesse da empresa fixar o trabalhador – o que já não corresponde à situação atual.

A palavra “paranapiacaba” significa, em tupi, “lugar de onde se vê o mar”. E, de fato, nos raros dias em que o céu está livre de neblina, é possível, do alto do morro, enxergar o litoral de Cubatão. “Mas, embora existam trilhas indígenas na região, até onde se sabe não havia nela nenhum povoamento pré-histórico. A vila nasceu em função da construção da ferrovia, inteiramente financiada pelo Barão, mais tarde Visconde, de Mauá, Irineu Evangelista de Sousa (1813 – 1889), que emprestou dinheiro para os ingleses e jamais foi ressarcido”, sublinhou a pesquisadora.

Empreendedor e abolicionista, considerado o primeiro grande capitalista brasileiro, Mauá possuía, na época da inauguração da ferrovia, um ativo estimado em 115 mil contos de réis, enquanto o orçamento do Império, no mesmo ano, contabilizava 97 mil contos de réis. Com suas iniciativas empresariais minadas pela política conservadora e logrado no empreendimento da São Paulo Railway, foi à falência, sendo obrigado a vender a maioria de suas empresas a capitalistas estrangeiros e a dispor de seus bens pessoais para liquidar as dívidas.

A arqueologia da São Paulo Oitocentista: Paranapiacaba
Autora: Cláudia Regina Plens
Editora: Annablume
Ano: 2016
Páginas: 138
Preço: R$ 51,83
Para mais informações acesse: www.annablume.com.br/loja/product_info.php?products_id=2108&osCsid=ih6nkjj8p3h.

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