Tecnologia

A quem servirá a TV digital

Soraya Misleh

 

A despeito de o Governo ter sinalizado no início de março pela escolha do padrão japonês, a briga de foice para ver quem vai abocanhar esse filão continua. “É um dos maiores mercados do mundo, o que chama a atenção de interesses econômicos e estrangeiros”, constata o professor da Escola Politécnica da USP (Universidade de São Paulo), Marcelo Zuffo.

Os números oficiais atestam: no Brasil, a televisão está em mais de 90% dos domicílios brasileiros. Além disso, os radiodifusores têm pressa na definição porque entendem, segundo observa José Dias Paschoal Neto, coordenador da TV PUC Campinas e diretor da Associação Brasileira de Televisão Universitária, que disso depende não serem atropelados por outras mídias – como a telefonia celular, que “já começa com transmissão de conteúdos”. Para ele, a questão é o que se deseja com a tecnologia e isso não foi posto à mesa. “Teria que se adotar modelo pensando no que se quer fazer com a TV digital. Se é permitir a interatividade e educação, ampliar o espectro e democratizar a informação. Infelizmente, o debate está desfocado. Hoje é sobre o padrão e o que se vê é um verdadeiro leilão”, resume. Na disputa, a balança pende para um ou outro lado a depender de quem der mais em contrapartidas – como a instalação de fábrica de semicondutores no País.

Contudo, para Zuffo, caso a decisão seja pela importação pura e simples de um padrão existente, a vir como uma “caixa preta”, esse não funcionará ou não atenderá as necessidades nacionais. Segundo ele, além de não permitir o desenvolvimento econômico e social, pode, tecnicamente, ter problemas na transmissão, se não houver adequação, casos dos modelos estadunidense e europeu. A demonstração feita por esse último, acrescenta o professor da Poli, só foi possível “porque ajudamos”. Laurindo Lalo Leal Filho, professor da ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes), atesta: “Qualquer dos modelos não servirá se optarmos pela alta definição, porque isso bloqueia a multiprogramação – e é a última chance de se aumentar o número de atores nesse processo – e a possibilidade de inclusão digital.” Ele continua: “A interatividade permitiria que cada aparelho de TV se convertesse num computador pessoal, seria o caminho para integrar a sociedade brasileira à Internet, levá-la a ter governo eletrônico, acesso à educação. Tem abrangência mais ampla do ponto de vista social do que um mero canal de compra e venda de produtos. E o modelo japonês defendido pelas concessionárias vai servir para isso, para ver o pêlo do bigode do Ratinho e comprar automóvel ou cerveja. É uma embalagem muito sofisticada para um produto ruim. Mas esses países não estão pensando nisso, são outras realidades.” Paschoal argumenta: “Entre as classes C e D, em torno de 43% ainda usam a famosa antena bombril. Para eles, HDTV (alta definição) é conversa de E.T. No País, 4,3 milhões de pessoas assistem à TV preto e branca, tem que ver se a TV digital não vai ampliar ainda mais esse fosso social, custar caro enquanto a Dona Maria continuará com sua televisão 14 polegadas por mais dez anos.” Conforme ele, o preço do conversor pode variar bastante a depender da escolha que se fizer. “O mais barato é o brasileiro, sairia por R$ 300,00 ou R$ 400,00. Qualquer dos outros custaria quatro a cinco vezes mais”, estima Zuffo. E vaticina: “O SBTVD (Sistema Brasileiro de TV Digital) é o único capaz de atender as exigências nacionais, mas levaria algum tempo para ser padronizado.”

 

Alternativas
Apresentado como referência pelo CPqD (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações), tal é resultado, como lembra Lalo, do trabalho desenvolvido por 22 consórcios de universidades envolvendo quase mil pesquisadores brasileiros. Todavia, teria sido deixado de lado pelo governo. “Depois de se investir cerca de R$ 50 milhões e dois anos de trabalho num modelo de TV digital que poderia ser colocado em prática no Brasil, com algumas complementações, essa massa crítica em ciência e tecnologia não pode ser desprezada dessa maneira”, lamenta. Para ele, como ainda não se bateu o martelo quanto ao padrão para a TV digital a ser adotado no País, permanece a oportunidade de “caminharmos para um modelo nacional prioritariamente, que sirva de parâmetro a outros países, começando com os do Mercosul (Mercado Comum do Sul)”.

Essa opção demandaria adiar a decisão, o que é a expectativa do professor da ECA. De acordo com ele, a pressão de organizações da sociedade civil e as contrapartidas oferecidas fizeram com que o governo recuasse e não anunciasse padrão. Porém, alerta Lalo, o embate de forças é brutal e “a não ser que o governo se sinta enfraquecido, isso pode ficar para depois das eleições”. Um respaldo para tanto, acredita, pode vir da Câmara dos Deputados – nova audiência pública sobre o tema estava sendo articulada para 4 de abril. Ainda na sua concepção, é uma decisão crucial ao País para ser tomada às pressas. “Não há necessidade de se colocar isso amanhã, há outras prioridades. Não vai matar a indústria nacional se deixar para depois, mas se o fizer agora de maneira errada essa possibilidade existe.” Zuffo, entretanto, acredita que “a pressão econômica e o avanço tecnológico fazem com que o Brasil não possa atrasar muito esse processo”. E aponta uma saída, inclusive, conforme noticiado, ventilada nos últimos dias nos gabinetes do Planalto: a adoção de um sistema híbrido, com contrapartidas e garantias de que se incorporem inovações brasileiras. “Se vier com a idéia de software livre, podendo se adequar o esqueleto básico às necessidades nacionais, tanto faz o padrão”, conclui Paschoal. O Ministério das Comunicações não quis se pronunciar sobre o assunto.

 

 

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