Opinião

Mais uma “reforma” do ensino superior

Eng. Antonio Hélio Guerra Vieira

 

O Projeto para mais uma reforma do ensino superior, proposto recentemente pelo MEC, tem provocado reações das mais variadas, manifestações, artigos e pronunciamentos contra e a favor.

Parece ser a hora de relembrar e rever alguns dos condicionamentos ou pressupostos dessa discussão que podem acabar se perdendo, mas que devem ser o ponto de partida de uma reforma. Depois, necessita-se do levantamento de problemas específicos a reformar. É assim que um engenheiro procede quando, por exemplo, quer reformar uma casa. A minha, que está fazendo 40 anos, exigiu uma ampliação, porque precisávamos de mais um escritório, do conserto do sistema de escoamento de águas pluviais, da eliminação de vazamentos do telhado e assim por diante. O diagnóstico feito, o trabalho objetivo é óbvio.

E o ensino superior no Brasil? Como está? O que nos incomoda?

A lista dos seus problemas não é pequena e está em constante mutação. É por isso que o tema é recorrente. Vejamos alguns pontos que, no momento, precisam de revisão.

O ensino superior no Brasil é predominantemente privado. Ao longo de muitos governos, de todas as tendências ideológicas, as universidades privadas chegaram a 85% do total. Dessas, algumas são chamadas confessionais (as PUCs, o Mackenzie, a Metodista, a Unisa e outras). As restantes são organizações supostamente sem fins lucrativos e algumas de fato o são. As universidades públicas são apenas 15%, quase todas federais, algumas – inclusive muito importantes como a USP, a Unesp e a Unicamp – estaduais e outras poucas municipais. Em geral, são gratuitas.

A partir da constatação de que o “ensino superior” está privatizado, é importante que as universidades se submetam a um processo moderno e forte de regulação, como, por exemplo, ocorre com as telecomunicações, que têm a agência reguladora Anatel. O complicador, no caso do ensino superior, é que a criação da Anatel precedeu a privatização das operadoras do sistema Telebrás.

O órgão regulador, em cada universidade, papel do conselho universitário no modelo das públicas, pode e deve receber um componente maior de membros externos à universidade. Mas como? Quem? As centrais sindicais, as corporações profissionais? O MST? Quem mais se habilita? Essa é uma clara disputa de poder, com pressupostos ideológicos, e esperemos que as opções finalmente escolhidas vejam com clareza esse aspecto da disputa.

 

Modelos diversos – Ao lado dessas questões, há o conflito entre ensino e pesquisa, vistos de modo diferente por alunos, professores e pela sociedade. Competem por recursos, necessariamente finitos, alocados pelo Governo ou pagos pelos alunos. As universidades públicas se engajam obsessivamente em atividades de pesquisa, nem sempre de nível razoável, em muitos casos com prejuízo dos cursos de graduação. Procuram assim preservar o modelo da universidade que vem, pelo menos, do século XIX, com a criação de Universidade de Humboldt em Berlim, modelo adotado na criação da USP, em 1934. Decorridos quase dois séculos de modificações extraordinárias na ciência, na economia, na política em todo o mundo, o modelo USP/ Humboldt já deveria ter sofrido profunda revisão e jamais sido imposto ao País todo.

Dessa revisão, deve resultar uma política para orientar a alocação de recursos para ensino e recursos para pesquisa. O ensino atende a uma demanda explícita – alunos interessados em vagas nos cursos profissionalizantes – e a pesquisa deve atender à necessidade das empresas, a curto e longo prazos, para gerar empregos, desenvolver a si próprias e ao País. Nessa divisão, é preciso lembrar que ensino e pesquisa não podem, nem precisam ser obrigatórios em todas as universidades. Algumas serão dedicadas apenas ao ensino, como ocorre em muitos países do mundo desenvolvido.

Para preservar a qualidade do ensino, as universidades adotam o numerus clausus, número fixo de vagas para novos alunos. Por pressão social ou política, e por um certo modismo tardio, têm sido propostas cotas para afrodescendentes, índios e possivelmente outras minorias. Cotas têm sido propostas ou utilizadas por outros países há pelo menos 30 anos. Nos Estados Unidos, oferecem cotas para latinos ou negros desde os anos 70. O problema crucial das cotas é o possível conflito com a competência, pedra-de-toque em qualquer sistema universitário desejável. Deve ser estudado com objetividade, com os dados disponíveis nos outros países e mesmo no Brasil, onde algumas experiências estão em andamento.

Outras questões importantes não poderão ser tratadas neste espaço exíguo. A autonomia das universidades públicas e privadas, por exemplo, está entre elas. A proposta do MEC, que se encontra em discussão, é muito minuciosa, e não vamos examiná-la aqui. Se tivesse, entretanto, que me manifestar, aprovando ou não o que ela possa conter como diagnóstico e como solução, minha resposta seria não. Como, aliás, é também a opinião de muitas pessoas das mais variadas tendências políticas, intelectuais, empresários e profissionais.

 

Antonio Hélio Guerra Vieira
é professor emérito da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e foi reitor dessa instituição de 1982 a 1986

 

Texto anterior

Próximo texto

JE 253