Debate

Engenheiros discutem “ouro azul” durante V Fórum Social Mundial

Rita Casaro

 

O tema foi tratado no seminário “Água: bem comum”, que integrou a programação da quinta edição do Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, de 26 a 31 de janeiro. A atividade, que aconteceu no dia 28, foi uma parceria entre o SEESP, a FNE (Federação Nacional dos Engenheiros) e demais sindicatos filiados a ela.

Cinco palestras abordaram diferentes aspectos relacionados ao bem vital: gerenciamento de recursos hídricos, o projeto de transposição do Rio São Francisco, saneamento básico, hidrovia e energia hidrelétrica. Na abertura, o diretor da FNE, Fermin Luis Perez Camison, representando o presidente Murilo Celso de Campos Pinheiro, lembrou a relevância do assunto para o futuro da humanidade. “A escolha deu-se pela sua absoluta importância para o nosso futuro. O grande desafio é garantir que esse bem vital esteja disponível para a humanidade e não se torne uma mercadoria à qual poucos terão acesso”, afirmou.

 

Comitê de bacias – “Sociedade civil e recursos hídricos” foi a questão levantada pelos dirigentes da Delegacia Sindical do SEESP em Piracicaba, Walter Antonio Becari e Fabiane Ferraz. Eles apresentaram a experiência do CBH (Comitê de Bacias Hidrográficas) dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, que conta com a participação da comunidade. Numa área de 5.320km2, essas bacias abrangem 58 municípios paulistas e quatro mineiros e uma população que ultrapassa os 4 milhões. A demanda de água atinge 40m3/s, o que, em 2000, já representava 107,5% da disponibilidade.
Diante da situação, que se apresenta crítica, ressaltou Becari, o esforço tem sido influenciar a gestão das águas de maneira a buscar a preservação e a continuidade do abastecimento. Nesse contexto, entre as atividades desenvolvidas, estão: contribuições à elaboração dos Termos de Referência dos Planos de Bacias 2000/2003 e 2004/2007; desenvolvimento de parecer técnico sobre a implantação da Termelétrica do Planalto Paulista; análise do RAP (Relatório Ambiental Preliminar) da AmBev – Jaguariúna; e subsídios ao parecer do CBH sobre a renovação da outorga do Sistema Cantareira.

Um aspecto fundamental, destacado pela engenheira agrônoma Fabiane Ferraz, foi a Câmara Técnica de Educação do Comitê. Essa desenvolve políticas de programas voltados à conscientização sobre as questões ambientais relativas às bacias e tem uma função decisiva: a capacitação de recursos humanos. Nesse grupo, incluem-se professores da rede de ensino, técnicos de ecoturismo e do meio rural e vigilantes ambientais, como os policiais florestais.

Outra iniciativa da câmara tem sido chamar a atenção para a necessidade de licenciamento de atividades econômicas que aparentemente não são impactantes. “Um exemplo é a piscicultura, porque a ração dada aos peixes, bem como os dejetos oriundos dessa atividade despejam nos mananciais fósforo e nitrogênio em quantidades muitas vezes acima do padrão permitido pela legislação. As granjas de porcos e frangos enquadram-se no mesmo caso”, advertiu Ferraz.

 

Velho Chico – Augusto César de Freitas Barros, presidente do Sindicato dos Engenheiros do Rio Grande do Norte, falou sobre “Transposição do São Francisco: pecados técnicos”, levantando a polêmica sobre o já centenário projeto de desviar as águas do rio com o anunciado objetivo de combater a seca no Nordeste. Baseado em estudos de especialistas, ele criticou a proposta ressuscitada pelo Governo Lula, caracterizando-a como “megalomaníaca”.

A idéia básica é levar água da Bacia de Sobradinho, na Bahia, na maior parte já comprometida, aos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, surpreendentemente em locais onde estão os maiores reservatórios, faltando apenas infra-estrutura de distribuição para atender as populações. De acordo com o engenheiro, nesse ponto reside a grande incoerência da empreitada: o recurso sairá de onde já é escasso para ser levado onde não é necessário. “Sobradinho tem 1.860m3, dos quais 1.500m3 comprometidos com a geração de energia. Do que resta, 335m3 já estão outorgados pela ANA (Agência Nacional de Águas) para outros usos. Vão transpor os últimos 25m3, ou seja, tirar a última gota d´água do rio”, explicou.

Para piorar, passará longe da zona rural, onde a seca é mais grave. Nesse caso, lembrou ele, a solução apontada é a defendida pela ASA (Articulação do Semi-árido Brasileiro), que propõe a construção de 1 milhão de cisternas. A transposição beneficiará, assim, apenas o agronegócio. Diante desse quadro, seria bem mais indicado que se promovesse a revitalização do Rio São Francisco, antes de qualquer outra iniciativa.

 

Mercado sedento – Tema não menos polêmico foi tratado pelo diretor do Sindicato dos Engenheiros do Rio Grande do Sul, José Homero Finamor Pinto, que defendeu o serviço público de saneamento básico. O setor, lembrou ele, entrou na mira das grandes corporações multinacionais, ávidas pelo controle e comercialização da água doce acessível no planeta.

Ao se tornar um negócio milionário, o bem, essencial à vida, vem se tornando cada vez mais caro – o preço médio já atinge US$ 1,10/m3. Na disputa por esse que é o grande negócio do século XXI e movimenta potencialmente US$ 400 bilhões por ano, estão gigantes do porte da Monsanto, Bechtel, Enrol, Generalle des Eaux, além de Nestlé e Coca-Cola. Para garantir seus interesses, que podem esbarrar no das sociedades de ter serviços públicos de abastecimento, valem-se de lobbies poderosíssimos, conforme apontou Finamor: “Há pressões descabidas. O FMI e Banco Mundial vêm incentivando as privatizações como condição para liberar empréstimos aos países detentores de recursos hídricos. Também tenta-se na OMC abrir os mercados nacionais de água potável.”

Já os serviços de tratamento de esgoto, muito menos rentáveis, não interessam ao mercado. “Eles querem apenas o filé, o osso fica com o Estado”, ironizou. “Está provado que não há viabilidade econômica para investimentos em esgoto sanitário. Portanto, tem de ser encarado como instrumento de saúde pública, até porque 1/3 das internações, doenças e óbitos têm origem na falta de saneamento básico”, informou.

 

Navegar é preciso – O potencial hidroviário brasileiro, atualmente desperdiçado, foi abordado por Emiliano Stanislau Affonso, diretor do SEESP. Segundo ele, o Brasil, com seus 43 mil quilômetros de vias navegáveis, pode ser “o país das hidrovias” e fazer disso uma enorme vantagem competitiva. “O uso da malha fluvial pode reduzir entre 40% e 60% o custo de movimentação de cargas como grãos e minério. Esse modal de transporte apresenta o mais baixo custo de implantação e manutenção”, afirmou. Nesse quesito, a superioridade é de fato incomparável: são US$ 34 mil/km, contra US$ 440 mil, no caso da rodovia, e US$ 1,4 milhão, no da ferrovia. Leva vantagem ainda em itens como eficiência energética, vida útil dos equipamentos e emissão de C02.

Com tamanhos benefícios, Affonso defendeu o uso da hidrovia para o transporte de cargas, “sua grande vocação”. “A utilização da Tietê-Paraná, por exemplo, tiraria 240 mil caminhões das estradas, poupando combustível fóssil e reduzindo a poluição”, ilustrou. No caso da mobilidade urbana, a alternativa esbarra em limitações de custos e capacidade. “É indicada para longas distâncias e travessias, e aí deveria ser bem explorada”, observou.

 

Energia líquida – O último ponto do seminário da FNE foi “Água, a grande fonte de energia elétrica brasileira”, tratado por Fernando Palmezan, também dirigente do SEESP. Traçando um panorama geral do sistema elétrico nacional, o engenheiro destacou o papel da hidreletricidade, hoje responsável por 76% da potência instalada total no País, equivalente a 90.674 MW.

As principais fontes hídricas para esse fim espalham-se principalmente pelas regiões Sul e Sudeste, estando presentes também no Norte e Nordeste. Segundo Palmezan, o grande achado para aproveitá-las bem, e que deve ser aperfeiçoado, é o sistema interligado, pelo qual se pode transmitir energia entre diferentes regiões.

Por isso mesmo, é preciso direcionar investimentos para a transmissão. Além do aproveitamento do potencial hídrico, ele propõe o planejamento integrado que possibilite a utilização das diversas fontes de forma racional. “O racionamento ocorrido em 2001 deveu-se ao baixo nível dos reservatórios, o que já era previsto por qualquer técnico do setor. Para que isso não se repita, é preciso que haja planejamento”, enfatizou.

 

FSM reúne 155 mil e apresenta propostas

 
Maior das cinco edições do Fórum Social Mundial, a de 2005 reuniu, segundo a organização, 155 mil pessoas, vindas de 135 países, que circularam por 2.500 atividades, todas promovidas pelas entidades participantes. Uma amostra da dimensão do evento já estava presente na marcha de abertura que, ao final, concentrou 200 mil no Anfiteatro Pôr do Sol, às margens do Rio Guaíba.

Assim, entre os dias 26 e 31 de janeiro último, mais uma vez, um gigantesco contingente da militância progressista – incluídos aí os mais diversos matizes – apostou no encontro de Porto Alegre como forma de buscar a alternativa ao neoliberalismo. Mas, desta vez, a atividade foi além, acredita o jornalista Antonio Martins, membro do Conselho Internacional do FSM. “Esse foi o melhor Fórum, pela densidade dos debates, pela presença da juventude, pelo fato de ter sido todo auto-organizado”, aponta. Na sua opinião, há também a clara vocação, neste ano, para desencadear ações pós-FSM. “Iniciativas como as campanhas contra a Alca, pela transformação da água em bem público, pelo cancelamento da dívida decidiram em Porto Alegre suas agendas. A própria leitura do programa permitia enxergar uma tentativa de ir além do Fórum.”

Apesar do sucesso, o FSM fica, ao menos temporariamente, fora da capital gaúcha. Em 2006, serão três eventos simultâneos: na Venezuela, no Marrocos e em um país asiático ainda não definido. Em 2007, volta a ocorrer um encontro único, mas no continente africano.

 

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