“PAGAMOS PARA LEVAREM O PATRIMÔNIO PÚBLICO”

A afirmação é do jornalista Aloysio Biondi, autor do livro "O Brasil Privatizado", publicado pela Fundação Perseu Abramo. Ele falou sobre os vícios que cercam a desestatização no País.

JE On Line: Como você avalia o episódio da venda da Cesp Tietê, em que o governo resolveu na última hora conceder financiamento do BNDES para empresas estrangeiras, beneficiando a AES?
Aloysio Biondi: A discussão é bem-vinda, mas na realidade não há qualquer novidade. Isso veio à tona porque o Antônio Ermírio tentou se fazer de vítima, o que eu considero encenação, porque o problema não é emprestar para multinacional, mas para qualquer grupo. Que desestatização é essa em que o governo dá o dinheiro ao comprador? O grande escândalo aconteceu em abril de 1998, quando, a cinco dias da privatização da Cemig, Fernando Henrique assinou um decreto autorizando o BNDES a emprestar dinheiro também para multinacionais. Pior: o decreto previa metade do preço mínimo e o BNDES financiou a outra parte por conta própria. E isso passou em brancas nuvens.

JE: E não é esse o único defeito do Programa Nacional de Desestatização...
Biondi: Outro que veio à tona graças à briga entre os compradores da CPFL foi a devolução do ágio por meio do Imposto de Renda. Com isso, a sociedade está se dando conta de que nós pagamos para que levassem o patrimônio público. E não é devolvida só a diferença entre o preço pago e o pedido pelo governo, mas entre o valor patrimonial, que despenca com todo o preparo anterior às privatizações — indenizações por demissões, acertos com fundo de pensão e provisão para inadimplência. No caso dos bancos, há um artifício próprio, que é lançar inadimplência como prejuízo e pagar menos IR. Numa eventual privatização do Banco do Brasil, por exemplo, vai parecer que 50% do crédito é irrecuperável, desvalorizando o preço de venda. Além disso, há o crédito tributário pelo qual as empresas podem abater de seus lucros os prejuízos dos últimos balanços das estatais e também reduzir o IR.


JE: Quais as conseqüências dessas privatizações para o País?
Biondi: Estão causando recessão e agravando a crise. Os setores industriais que mais caíram até setembro foram telecomunicações e energia, que tiveram 16% de retração na produção. Em contrapartida, o desemprego na Espanha caiu graças às encomendas nesses setores. E a desnacionalização tem como pior efeito a remessa de dinheiro para fora. Nos últimos sete anos, saltou de US$ 600 milhões para US$ 7 bilhões. Para piorar, essas empresas têm empréstimos com bancos estrangeiros, que integram a dívida externa brasileira. E não há projetos de investimentos acoplados ao desenvolvimento da indústria nacional. Há 23 projetos para utilizar gás em usinas termelétricas, 20 de grupos norte-americanos. Com a alta do petróleo, o gás ficou antieconômico. A solução para isso é que a Petrobrás vai vender o gás por um preço subsidiado por 20 anos. E se houver excedentes, serão comprados pela Eletrobrás. Subsídio da Petrobrás durante 20 anos e compra de excedentes! Ah, e a usina vai ser importada, claro.

JE: É possível reverter essa situação?
Biondi: Estamos num momento chave. Há inflação, não há estoque de alimentos e vai haver carestia. É uma situação totalmente nova e as pessoas começam a reagir, mas as mudanças têm que passar pelo Legislativo, que precisa evitar as privatizações que ainda faltam. Embora a situação esteja praticamente irremediável, devemos ter esperança. A ditadura também parecia um pesadelo interminável, mas acabou.


Absurdos na venda da Cesp
A privatização da Cesp-Tietê, vendida ao grupo americano AES, em 27 de outubro, por R$ 938 milhões, com financiamento de R$ 360 milhões a juros subsidiados do BNDES, trouxe à tona a discussão em torno do PND (Programa Nacional de Desestatização). Uma ação popular elaborada pelo advogado Tadeu Ragot conseguiu decisão liminar favorável do juiz José Carlos Francisco, da 10a Vara da Justiça Federal, proibindo o financiamento, que havia sido autorizado por FHC. A decisão não foi cumprida e o juiz proferiu nova sentença para que o BNDES estorne o crédito concedido à AES.

Contudo, há mais o que se questionar na venda da Cesp. Ela foi dividida em três empresas geradoras e uma transmissora. A Cesp-Paranapanema foi vendida por R$ 1,2 bilhão e a Cesp-Tietê por R$ 938 milhões. Foram leiloadas 38,67% das ações. Considerando-se esse dado e mais a dívida que os compradores estarão assumindo e efetuando as conversões, baseando-se nas potências instaladas de 2.307mW da Cesp-Paranapanema e 2.651mW da Cesp-Tietê, chegaremos aos valores pagos de US$ 1.016 por kW instalado da Paranapanema e US$ 666 por kW instalado da Tietê. Em nenhum local do mundo as empresas norte-americanas Duke Energia e AES Corporation conseguiriam construir usinas hidrelétricas por esse preço. Hoje, qualquer novo empreendimento custaria no mínimo US$ 1.500 por kW instalado.

Para piorar, para 30% do valor ofertado pelo novo controlador pode ser utilizado CPA (Certificado Paulista de Ativos), proveniente de dívidas do governo paulista com empreiteiras e fornecedores — moeda podre, portanto.

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